sexta-feira, 30 de agosto de 2013

A Batalha do labirinto - capitulo 11




                                               Eu pego fogo

Eu achei que tínhamos perdido a aranha até que Tyson ouviu um fraco barulho de cliques. Nós fizemos algumas curvas, recuamos algumas vezes, e finalmente encontramos a aranha batendo a sua pequena cabeça numa porta de metal.

A porta parecia um daqueles antigos alçapões de submarinos – oval, cheia de rebites de metal nas beiradas e uma argola como maçaneta. Onde devia estar o portal havia uma enorme placa de latão, esverdeada pelo tempo, com um eta grego inscrito no meio.

Nós nos entreolhamos.

– Prontos para conhecer Hefesto? – perguntou Grover, nervoso.

– Não – admiti.

– Sim! – disse Tyson feliz, e ele girou a argola.

Assim que a porta abriu, a aranha entrou rapidamente, com Tyson logo atrás. O resto de nós seguiu logo atrás, não tão ansiosos.

A sala era enorme. Parecia uma oficina mecânica, com vários elevadores hidráulicos.

Alguns tinham carros, mas outros tinham as coisas mais estranhas: um hipaeléctrion de bronze sem sua cabeça de cavalo e com vários arames saindo de seu rabo de galo, um leão de metal que parecia ligado a um carregador de bateria, e uma carruagem grega feita inteiramente de chamas.

Projetos menores cobriam outras mesas bagunçadas. Ferramentas estavam penduradas ao longo da parede. Cada uma tinha seu esboço numa placa de madeira pendurada, mas nada parecia estar no lugar correto. O martelo estava no lugar da chave de fenda. O grampeador onde a serra deveria estar.

Sob o elevador hidráulico mais próximo, que erguia um Toyota Corolla 98, um par de pernas se estendia – a metade de baixo de um homenzarrão em calças cinzas surradas e sapatos maiores que os de Tyson. Uma perna estava num suporte metálico. A aranha foi direto para debaixo do carro, e os sons de clique pararam.

– Bem, bem – ressoou uma voz profunda vinda debaixo do Corolla. – O que temos aqui?

O mecânico empurrou o carrinho para fora e se sentou. Eu já tinha visto Hefesto uma vez antes, brevemente no Olimpo, então pensei que estaria preparado, mas sua aparência me fez engasgar.

Acho que ele havia se limpado quando eu o vi no Olimpo, ou usado magia para fazer sua forma parecer menos horrível. Aqui em sua própria oficina, ele aparentemente não ligava para sua aparência. Ele usava um macacão sujo de óleo e graxa. Hefesto estava bordado no bolso do peito. Sua perna rangia e estalava no suporte de metal enquanto ele levantava, e seu ombro esquerdo era mais baixo que o direito, então ele parecia estar inclinado mesmo quando estava ereto. Sua cabeça era deformada e torta. Era permanentemente carrancudo. Sua barba preta fumegava e chiava. De vez em quando irrompia uma chama em seu bigode e depois sumia. Suas mãos eram do tamanho de luvas de beisebol, mas ele manuseou a aranha com uma habilidade impressionante. Ele a desmontou em dois segundos e depois a remontou.

– Assim – ele balbuciou para si mesmo. – Bem melhor.

A aranha se sacudiu feliz em sua mão, lançou uma teia metálica no teto, e foi embora balançando.

Hefesto olhou ameaçador para nós.

– Eu não os fiz, fiz?

– Hum – Annabeth disse. – Não, senhor.

– Bom – ele se queixou. – O acabamento está péssimo.

Ele estudou Annabeth e eu.

– Meio-sangues – ele grunhiu. – Poderiam ser autômatos, claro, mas provavelmente não.

– Nós já nos vimos, senhor – eu disse a ele.

– Ah, já? – o deus perguntou distraidamente. Tive a sensação de que isso não faria diferença. Ele só estava tentando descobrir como funcionava minha mandíbula, se havia articulações, uma alavanca ou algo do gênero. – Bom, se eu não o esmaguei da primeira vez, provavelmente não terei que fazer isso agora.

Ele olhou para Grover e franziu as sobrancelhas.

– Sátiro. – Então ele viu Tyson e seus olhos, cintilaram. – Bem, um Ciclope. Bom, bom. O que você está fazendo viajando com esse grupo?

– Hum... – disse Tyson, olhando admirado para o deus.

– Sim, bem dito – Hefesto concordou. – Então, é bom haver uma boa razão para vocês me perturbarem. A suspensão deste Corolla não é fácil, sabe.

– Senhor – Annabeth disse hesitante, – nós estamos procurando por Dédalo. Nós pensamos–

– Dédalo? – O deus rugiu. – Vocês querem aquele velho miserável? Vocês ousam procurá-lo!

A barba dele pegou fogo e seus olhos incandesceram.

– Hã, sim, senhor, por favor – Annabeth disse.

– Humpf. Estão perdendo tempo. – Ele franziu a testa para algo em sua mesa de trabalho e mancou até lá. Ele pegou algumas molas e peças metálicas e as remendou. Em alguns segundos ele estava segurando um falcão de bronze e prata. Ele abriu suas asas metálicas, piscou seus olhos obsidianos e voou pela sala.

Tyson riu e aplaudiu. O pássaro pousou no ombro de Tyson e beliscou sua orelha afetuosamente.

Hefesto observou com atenção. A carranca do deus não mudou, mas pensei ter visto um brilho em seus olhos.

– Eu sinto que você tem algo a me dizer, Ciclope.

O sorriso de Tyson desapareceu.

– S-sim, senhor. Nós encontramos um centímanos.

Hefesto assentiu, sem demonstrar surpresa.

– Briareu?

– Sim. Ele... ele estava apavorado. Ele não nos ajudou.

– E isso te incomodou.

– Sim! – a voz de Tyson vacilou. – Briareu devia ser forte! Ele é mais velho e maior que os Ciclopes. Mas ele fugiu.

Hefesto grunhiu.

– Houve um tempo em que eu admirava os Centímanos. Nos tempos da primeira guerra. Mas pessoas, monstros e até mesmo deuses mudam, meu jovem Ciclope. Você não pode confiar neles. Veja minha adorável mãe, Hera. Você a conheceu, não foi? Ela vai sorrir pra você e falar quão importante a família é, não é? Isso não a impediu de me atirar para fora do Monte Olimpo quando viu minha cara feia.

– Mas eu pensei que Zeus tivesse feito isso com você – eu disse.

Hefesto limpou a garganta e cuspiu numa escarradeira de bronze. Ele estalou os dedos e o falcão-robô voou de volta para a mesa.

– Minha mãe gosta de contar essa versão da história – ele resmungou. – Isso a torna mais adorável, não torna? Jogando a culpa toda no meu pai. A verdade é que minha mãe gosta de famílias, mas um certo tipo de família. Famílias perfeitas. Ela deu uma olhada em mim e... bem, eu não sou nenhuma maravilha, sou?

Ele puxou uma pena das costas do falcão, e o autômato se desmontou completamente.

– Acredite em mim, jovem Ciclope – Hefesto disse, – você não pode confiar nos outros. Você só pode confiar no trabalho de suas próprias mãos.

Parecia um jeito muito solitário de se viver. Além do que, eu não confiava muito no trabalho de Hefesto. Uma vez em Denver, suas aranhas metálicas quase mataram Annabeth e eu. E ano passado, foi uma estátua defeituosa de Talos que custou a vida de Bianca – mais um dos pequenos projetos de Hefesto.

Ele focou em mim e estreitou os olhos, como se estivesse lendo meus pensamentos.

– Ah, este aqui não gosta de mim – ele meditou. – Sem problema, estou acostumado com isso. O que você pediria a mim, pequeno semideus?

– Nós falamos para você – eu disse. – Temos que achar Dédalo. Há este cara, Luke, que está trabalhando para Cronos. Ele está procurando um jeito de navegar pelo labirinto para poder invadir nosso acampamento. Se nós não acharmos Dédalo antes–

– E eu já disse a você, garoto. Procurar por Dédalo é uma perda de tempo. Ele não vai ajudá-los.

– Por que não?

Hefesto deu de ombros.

– Alguns de nós somos jogados do alto de montanhas. Alguns de nós... o jeito como aprendemos a não confiar nas pessoas é mais doloroso. Peça-me ouro. Ou uma espada chamejante. Ou um corcel mágico. Isso eu posso lhe dar facilmente. Mas um caminho até Dédalo? Este é um favor muito caro.

– Sabe onde ele está, então – Annabeth pressionou.

– Não é sensato procurar por ele, garota.

– Minha mãe diz que a procura é a essência da sabedoria.

Hefesto apertou os olhos.

– Quem é sua mãe, afinal?

– Atena.

– Imaginei. – Ele suspirou. – Boa deusa, a Atena. Uma pena que ela tenha se comprometido a nunca se casar. Está bem, meio-sangue. Eu posso dizer o que vocês querem saber. Mas há um preço. Preciso que me façam um favor.

– Diga – disse Annabeth.

Hefesto realmente gargalhou – um som estrondoso como um fogo sendo alimentado.

– Vocês, heróis – ele disse, – sempre fazendo promessas apressadas. Que reconfortante.

Ele apertou um botão em sua bancada, e venezianas metálicas se abriram ao longo da parede. Ou era uma janela enorme ou uma TV tela grande, eu não pude discernir.

Estávamos olhando para uma montanha cinza rodeada de florestas. Deve ter sido um vulcão, pois saia fumaça do seu cume.

– Uma das minhas forjas – Hefesto falou. – Eu tenho muitas, mas costumava ser a minha favorita.

– É o Monte Sta. Helena – disse Grover. – Ótimas florestas em volta.

– Você já esteve lá? – perguntei.

– Procurando por... você sabe, Pã.

– Espere – Annabeth falou, olhando para Hefesto. – Você disse que costumava ser a sua favorita. O que aconteceu?

Hefesto coçou sua barba latente.

– Bom, é onde Tifão está preso, você sabe. Costumava ser sob o Monte Etna, mas quando nos mudamos para a América, sua força se fixou sob o Monte Sta. Helena. Excelente fonte de fogo, mas é meio perigoso. Sempre há uma chance de ele escapar. Muitas erupções esses dias, sempre ativo. Ele está inquieto com a rebelião dos Titãs.

– O que você quer que a gente faça? – eu disse. – Lute contra ele?

Hefesto bufou. 

– Seria suicídio. Os próprios deuses fugiam de Tifão quando ele estava livre. Não, reze para que nunca tenha que vê-lo, muito menos lutar com ele. Mas ultimamente eu tenho sentido intrusos na montanha. Alguém ou alguma coisa está usando minha forja. Quando eu vou lá, está vazia, mas posso dizer que está sendo usada. Eles percebem que estou chegando e somem. Mandei meus autômatos investigarem, mas eles não retornaram. Algo... antigo está lá. Maligno. Quero saber quem ousa invadir meu território, e se eles pretendem soltar Tifão.

– Você quer que a gente descubra quem é – falei.

– Positivo – Hefesto disse. – Vão lá. Eles provavelmente não perceberão vocês chegando. Vocês não são deuses.

– Fico feliz por você ter notado – murmurei.

– Vão e descubram o que puderem – Hefesto disse. – Relatem tudo a mim, e eu direi a vocês o que precisam saber sobre Dédalo.

– Certo – Annabeth disse. – Como chegamos lá?

Hefesto bateu palmas. A aranha desceu balançando pelas vigas. Annabeth recuou quando a aranha pousou no pé dela.

– Minha criação vai mostrar a vocês o caminho – Hefesto disse. – Não é muito longe pelo Labirinto. E tentem ficar vivos, ok? Humanos são muito mais frágeis que autômatos.



Estávamos indo bem até chegarmos nas raízes das árvores. A aranha correu por elas, e nós acompanhamos, mas aí nós vimos um túnel escavado na terra, envolto em raízes. Grover estacou.

– O que foi? – perguntei.

Ele não se mexeu. Ele encarou boquiaberto o túnel escuro. Seu cabelo enrolado farfalhou ao vento.

– Vamos! – disse Annabeth. – Temos que continuar.

– Este é o caminho – disse ele receoso. – É este.

– Que caminho? – perguntei. – Você quer dizer... até Pã?

Grover se virou para Tyson.

– Você não sente?

– Lama – Tyson disse. – E plantas.

– Sim! Este é o caminho. Tenho certeza disso!

Mais à frente, a aranha estava cada vez mais longe pelo corredor de pedra. Mais alguns segundos e a perderíamos.

– Nós voltaremos – Annabeth prometeu. – Quando estivermos voltando a Hefesto.

– O túnel terá desaparecido até lá – Grover disse. – Eu tenho que segui-lo. Uma porta como esta não permanecerá aberta!

– Mas não podemos – Annabeth disse. – A forja!

Grover a olhou, cabisbaixo.

– Eu tenho que ir, Annabeth. Você não entende?

Ela parecia desesperada, como se não estivesse entendendo nada. A aranha estava quase fora de visão. Mas eu pensei sobre minha conversa com Grover na noite passada e vi o que tínhamos que fazer.

– Vamos nos separar – falei.

– Não! – Annabeth disse. – É muito perigoso. Como vamos nos encontrar de novo? E Grover não pode ir sozinho.

Tyson pôs sua mão no ombro de Grover.

– E-eu vou com ele.

Eu não podia acreditar que tinha ouvido aquilo.

– Tyson, você tem certeza?

O grandão assentiu.

– Garoto-bode precisa de ajuda. Nós vamos achar o deus. Eu não sou como Hefesto. Eu confio nos amigos.

Grover respirou fundo.

– Percy, nós vamos nos encontrar de novo. Ainda temos a conexão empática. Eu apenas... tenho que ir.

Eu não o culpei. Esse era o objetivo da vida dele. Se ele não achasse Pã nesta viagem, o Conselho jamais daria outra chance a ele.

– Espero que você esteja certo – falei.

– Eu sei que estou. – Eu nunca o vira soar tão confiante sobre alguma coisa, exceto que enchilada de queijo era melhor que enchilada de frango.

– Se cuida – falei pra ele. Então olhei para Tyson. Ele engoliu um soluço e me deu um abraço que quase fez meus olhos saltarem das órbitas.

Depois ele e Grover desapareceram no túnel das raízes da árvore, sumindo no escuro.

– Isso é ruim – Annabeth disse. – Separar é uma ideia muito, muito ruim.

– Nós vamos vê-los de novo – eu disse, tentando parecer confiante. – Agora vamos. A aranha está escapando!



Não fomos muito longe até o túnel começar a esquentar.

As paredes cintilavam. O ar fazia parecer como se estivéssemos andando dentro de um forno. O túnel descia e eu pude ouvir um barulho alto, como um rio de metal. A aranha deslizou por ele, com Annabeth logo atrás.

– Ei, espera aí – eu chamei por ela.

Ela olhou de volta pra mim.

– Sim?

– Uma coisa que Hefesto disse lá atrás... sobre Atena.

– Ela prometeu nunca se casar – Annabeth disse. – Como Ártemis e Héstia. Ela é uma das deusas donzelas.

Eu pisquei. Eu nunca tinha ouvido falar isso sobre Atena antes.

– Mas então–

– Como ela pode ter filhos semideuses?

Fiz que sim. Eu provavelmente estava ficando vermelho, mas felizmente estava tão quente que Annabeth nem notou.

– Percy, você sabe como Atena nasceu?

– Ela surgiu da cabeça de Zeus em uma armadura de batalha completa ou algo assim.

– Exatamente. Ela não nasceu do jeito normal. Ela literalmente nasceu de pensamentos. Seus filhos nascem do mesmo jeito. Quando Atena se apaixona por um mortal, é puramente intelectual, como ela amou Odisseu nas histórias antigas. É um encontro de mentes. Ela diria que é o jeito mais puro de amor.

– Então seu pai e Atena... então você não...

– Eu fui uma criança-cérebro – ela disse. – Literalmente. Filhos de Atena surgem dos pensamentos divinos de nossa mãe e da ingenuidade mortal de nosso pai. Supostamente nós somos como um presente, uma benção de Atena para os homens que ela favorece.

– Mas–

– Percy, a aranha está indo embora. Você quer mesmo que eu explique os detalhes de como eu nasci?

– Hum... não. Tá tudo bem.

Ela sorriu.

– Eu pensei que não. – Então ela correu adiante. Eu a segui, mas não tinha certeza se olharia para Annabeth de novo do mesmo jeito. Decidi que algumas coisas são melhores quando permanecem como mistérios.

O barulho aumentou. Após oitocentos metros ou mais, nós saímos numa caverna do tamanho de um estádio de futebol americano. Nossa aranha guia parou e se enrolou até virar uma bola. Nós havíamos chegado à forja de Hefesto.

Não havia chão, apenas lava borbulhando centenas de metros abaixo. Ficamos no cume de uma rocha que circundava a caverna. Uma rede de pontes metálicas atravessava a caverna. No centro havia uma plataforma gigante com todos os tipos de máquinas, caldeirões, fornos e a maior bigorna que eu já havia visto – um bloco de metal do tamanho de uma casa. Criaturas se mexiam pela plataforma – várias formas estranhas e escuras, mas estavam muito longe para vermos detalhes.

Annabeth pegou a aranha de metal e pôs no bolso.

– Eu posso fazer isso. Espere aqui.

– Espere! – eu disse, mas antes que pudesse discutir ela pôs seu boné dos Yankees e ficou invisível.

Eu não ousei chamá-la, mas não gostei da ideia de ela se aproximar da forja sozinha. Se aquelas coisas podiam sentir um deus chegando, será que Annabeth estaria segura?

Olhei de volta para o túnel do Labirinto. Já sentia falta de Grover e Tyson. Finalmente decidi que não podia ficar parado. Andei pela borda exterior do rio de lava, torcendo para que eu tivesse um ângulo melhor pra ver o que estava acontecendo no meio.

O calor era terrível. O rancho de Geríon era um paraíso de inverno comparado a isto.

Em pouco tempo eu estava encharcado de suor. Meus olhos ardiam com a fumaça. Eu continuei, tentando ficar longe da beirada, até achar meu caminho bloqueado por um carrinho com rodas de metal, como aqueles que tinham em minas. Eu levantei a lona e vi que ele estava meio cheio com pedaços de metal. Eu estava para me espremer e passar quando ouvi vozes vindas lá da frente, provavelmente de um túnel lateral.

– Trazer pra cá? – um perguntou.

– É – outro disse. – O filme está quase pronto.

Eu entrei em pânico. Não tinha tempo pra voltar. Não tinha lugar para me esconder além do... carrinho. Subi no carrinho e me cobri com a lona, esperando que ninguém tivesse me visto. Passei minha mão em Contracorrente, só para o caso de precisar lutar.

O carrinho balançou para frente.

– Oh – uma voz rude disse. – Isto pesa uma tonelada.

– É bronze celestial – disse o outro – Você esperava o quê?

Eu fui puxado pelo caminho. Fizemos uma curva, e pelo barulho das rodas de metal ecoando eu achei que tínhamos passado por um túnel e entrado numa sala menor.

Felizmente eu não estava a ponto de ser despejado num recipiente de fundição. Se eles começassem a me tombar, eu teria que lutar para abrir meu caminho rápido. Eu ouvi muitas conversas, vozes que não pareciam humanas – algo entre um latido de foca e um rugido de cachorro. Havia outros sons também – como um projetor de filmes antigo e uma voz fina narrando.

– Apenas coloquem lá atrás – uma nova voz ordenou do outro lado da sala. – Agora, filhotes, queiram assistir o filme. Terão tempo para perguntar depois.

As vozes diminuíram e eu pude ouvir o filme.

Conforme um demônio marinho amadurece, o narrador disse, mudanças acontecem no corpo do monstro. Você deve perceber suas presas crescerem e um desejo repentino de devorar humanos. Essas mudanças são perfeitamente normais e acontecem a todos os jovens monstros.

Rosnados excitados encheram a sala. O professor – eu pensei que devia ser um professor – disse aos garotos para ficarem quietos, e o filme continuou. Eu não entendi a maior parte dele, e não ousei olhar. O filme continuou a falar sobre crescimento e problemas de acne causados pelo trabalho nas forjas, e higiene adequada das nadadeiras e enfim, acabou.

– Agora, filhotes – o instrutor disse, – qual é o nome certo de nossa espécie?

– Demônios marinhos! – um deles latiu.

– Não. Mais alguém?

– Telquines! – outro monstro gritou.

– Muito bem – disse o instrutor. – E por que estamos aqui?

– Vingança! – vários gritaram.

– Sim, sim, mas por quê?

– Zeus é mau! – um monstro disse. – Ele nos jogou no Tártaro só porque usamos magia.

– De fato – o instrutor falou. – Depois de termos feito as melhores armas dos deuses. O tridente de Poseidon, por exemplo. E é claro – nós fizemos a melhor arma dos Titãs!

No entanto, Zeus nos dispensou e se aliou àqueles Ciclopes desastrados. É por isso que estamos nos apossando da forja do usurpador Hefesto. E em breve controlaremos as fornalhas submarinas, nossa casa ancestral.

Eu peguei minha caneta-espada. Essas coisas rosnantes haviam criado o tridente de Poseidon? Do que eles estavam falando? Eu nunca ouvira falar de um telquine.

– E então, crianças –o instrutor continuou, – a quem nós servimos?

– Cronos! – eles gritaram.

– E quando vocês crescerem e forem grandes telquines, farão armas para o exército?

– Sim!

– Excelente. Agora, nós trouxemos alguns pedaços de metal para vocês praticarem. Vamos ver o quão engenhosos vocês são.

Houve movimentos agitados e vozes excitadas ao redor do carrinho. Eu me preparei para desencapar Contracorrente. A lona foi jogada para trás. Eu pulei, minha espada ganhou vida em minhas mãos, e eu me vi encarando um monte de... cachorros.

Bom, suas caras eram de cachorro, de qualquer jeito, com focinhos pretos, olhos castanhos, e orelhas pontudas. Seus corpos eram lisos e pretos como mamíferos marinhos, com pernas atarracadas que eram metade nadadeira, metade pé, e mãos humanas com garras afiadas. Se você misturar um garoto, um pinscher, um Doberman, e um leão marinho, você vai ter algo parecido com o que eu estava olhando.

– Um semideus! – um rosnou.

– Comam-no! – gritou outro.

Mas isso foi tudo que conseguiram dizer antes que eu tivesse golpeado em um amplo arco com Contracorrente e vaporizado por completo a fileira da frente de monstros.

– Para trás! – eu gritei para o resto, tentando parecer feroz. Atrás deles estava o instrutor – um telquine de dois metros de altura com presas de Dobermann rosnando para mim.

Fiz o máximo que pude para encará-lo.

– Lição nova, classe – anunciei. – A maioria dos monstros vai vaporizar quando fatiado por uma espada de bronze celestial. Essa mudança é perfeitamente normal, e vai acontecer com vocês agora mesmo se vocês não RECUAREM!

Para a minha surpresa, funcionou. Os monstros recuaram, mas havia pelo menos vinte deles. Meu fator medo não ia durar muito.

Eu pulei do carrinho, gritei:

– CLASSE DISPENSADA! – e corri para a saída.

Os monstros me atacaram, latindo e rosnando. Eu esperava que eles não pudessem correr muito com aquelas pernas atarracadas e nadadeiras, mas eles gingavam muito bem. Graças aos deuses havia uma porta no túnel que ia para a caverna principal. Eu a bati com força e virei a argola para trancá-la, mas duvidava que isso iria segurá-los por muito tempo.

Eu não sabia o que fazer. Annabeth estava lá fora em algum lugar, invisível. Nossas chances de uma missão de reconhecimento discreta já eram. Eu corri até a plataforma no centro do rio de lava.



– Annabeth! – gritei.

– Shhh! – uma mão invisível tampou minha boca, e me puxou para trás de um caldeirão de bronze. – Você quer nos matar?

Eu achei sua cabeça e tirei seu boné dos Yankees. Ela surgiu na minha frente, carrancuda, seu rosto coberto com cinzas e fuligem.

– Percy, qual é o seu problema?

– Nós vamos ter companhia! – Eu expliquei rapidamente sobre a aula de orientação para monstros. Seus olhos se arregalaram.

– Então é isso que eles são – ela disse. – Telquines, eu deveria saber. E eles estão fazendo... bem, veja.

Nós espreitamos por cima do caldeirão. No centro da plataforma havia quatro demônios marinhos, mas estes estavam completamente crescidos, pelo menos dois metros e meio de altura. Suas peles negras brilhavam na luz do fogo conforme trabalhavam, faíscas voando enquanto eles se revezavam em bater num pedaço de metal quente e brilhante.

– A lâmina está quase completa – um disse. – Precisa de outro resfriamento em sangue para fundir os metais.

– Positivo – o segundo disse. – Deve ficar ainda mais afiada do que antes.

– O que é isso? – eu sussurrei.

Annabeth balançou a cabeça.

– Eles ficam falando sobre metais fundidos. Eu imagino–

– Eles estavam falando da maior arma dos Titãs – eu disse. – E eles... eles disseram que fizeram o Tridente do meu pai.

– Os telquines traíram os deuses – Annabeth disse. – Eles estavam usando magia negra. Eu não sei o quê, exatamente, mas Zeus os baniu para o Tártaro.

– Com Cronos.

Ela assentiu.

– Nós temos que sair daqui–

Mal ela disse isso e a porta para a sala de aula explodiu e pequenos telequines saíram. Eles tropeçavam uns nos outros, tentando descobrir um modo de atacar.

– Ponha seu boné de novo – eu disse. – Saia!

– O quê? – ela guinchou. – Não! Eu não vou deixar você!

– Eu tenho um plano. Vou distraí-los. Você pode usar a aranha de metal - talvez ela a leve de volta a Hefesto. Você tem que dizer a ele o que está acontecendo.

– Mas você vai ser morto!

– Eu vou ficar bem. Além disso, não temos escolha.

Annabeth me olhou como se fosse me bater. E então ela fez algo que me surpreendeu ainda mais. Ela me beijou.

– Se cuida, cabeça de alga. – Ela pôs o boné e saiu.

Eu provavelmente teria ficado sentado lá o dia todo, olhando para o rio de lava e tentando lembrar qual era o meu nome, mas os demônios marinhos me levaram de volta para a realidade.

– Ali! – um gritou. A classe inteira de telequines subiu na ponte e vieram me atacar. Eu corri para o meio da plataforma, surpreendendo os quatro demônios marinhos mais velhos de um jeito que eles largaram a lâmina vermelha-quente. Tinha dois metros de comprimento e era curvada como uma lua crescente. Eu já tinha visto várias coisas aterrorizantes, mas essa coisa-seja-lá-o-que-for inacabada me assustou ainda mais. Os demônios marinhos mais velhos se recuperaram da surpresa rapidamente. Havia quatro rampas saindo da plataforma, e antes que eu pudesse correr para qualquer direção, cada um deles bloqueou uma saída.

O mais alto rosnou.

– O que temos aqui? Um filho de Poseidon?

– Sim – o outro rugiu. – Eu posso sentir o cheiro do mar em seu sangue.

Eu ergui Contracorrente. Meu coração estava disparado.

– Derrube um de nós, semideus – o terceiro demônio disse, – e o resto de nós o fará em pedaços. Seu pai nos traiu. Ele aceitou nosso presente e não disse nada enquanto éramos jogados no abismo. Nós o veremos ser feito em pedaços. Ele e os outros Olimpianos.

Eu desejei ter um plano. Desejei não ter mentido para Annabeth. Eu quis que ela se safasse, e esperei que ela fosse sensata e fizesse isso. Mas agora me parecia que este seria o lugar em que eu morreria. Sem profecias para mim. Eu seria devastado no coração de um vulcão por um bando de caras leões-marinhos com caras-de-cachorro. Os jovens telequines estavam na plataforma agora, rosnando e esperando para ver o que os quatro mais velhos fariam comigo.

Senti algo queimando na lateral da minha perna. O apito de gelo em meu bolso estava ficando mais gelado. Se houve um momento em que precisei de ajuda, agora era a hora. Mas eu hesitei. Eu não confiava no presente de Quintus.

Antes que eu pudesse me decidir, o mais alto falou:

– Vejamos quão forte ele é. Vejamos quanto tempo leva para ele queimar.

Ele pegou um pouco de lava da fornalha mais próxima. Isso fez seus dedos flamejarem, mas aquilo não pareceu incomodá-lo nem um pouco. Os outros três telequines mais velhos fizeram o mesmo. O primeiro atirou um pouco de pedra fundida em mim e minhas calças pegaram fogo. Outros dois acertaram meu peito. Eu soltei minha espada aterrorizado e bati nas minhas roupas. O fogo estava me engolfando. Estranhamente, ficou apenas morno no começo, mas estava ficando mais quente a cada momento.

– A natureza de seu pai o protege – um disse. – Torna você difícil de queimar, mas não impossível, jovenzinho. Não impossível.

Eles atiraram mais lava em mim, e me lembro de gritar. Meu corpo inteiro estava pegando fogo. A dor era pior do que qualquer coisa que eu tivesse sentido. Eu estava sendo consumido. Caí no chão de metal e ouvi os pequenos telequines uivando com prazer. Então me lembrei da voz da náiade no rancho: A água está em mim.

Eu precisava do mar. Senti um solavanco no estômago, mas não havia nada por perto que me ajudasse. Nenhuma torneira ou rio. Nem mesmo uma concha marinha petrificada. E também, da última vez que eu liberei meus poderes no estábulo, houve aquele momento terrível em que quase perdi o controle.

Eu não tinha escolha. Chamei o mar. Alcancei dentro de mim e me lembrei das ondas e das correntes, do poder infinito do oceano. E eu o libertei com um grito horrendo.

Depois, eu nunca pude descrever o que aconteceu. Uma explosão, uma onda tremenda, um turbilhão de poder ao mesmo tempo me pegando e me explodindo debaixo de lava.

Fogo e água colidiram, vapor superaquecido, e eu fui atirado para cima do centro do vulcão numa explosão gigantesca, apenas uma parte dos destroços liberados por milhões de toneladas de pressão. A última coisa de que me lembro antes de perder a consciência foi voar, voar tão alto que Zeus jamais me perdoaria, e então começar a cair, fumaça e fogo e água fluindo de mim. Eu era um cometa indo na direção da terra.

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