quinta-feira, 29 de agosto de 2013

A Maldição do titã - capitulo 14



                          Eu tenho um problema de barragem

No limite do ferro-velho encontramos um reboque tão velho que deve ter se jogado fora por conta própria. Mas o motor ligou, e ele estava com o tanque cheio, então decidimos pegá-lo emprestado.

Thalia dirigiu. Ela não parecia tão atordoada quanto Zöe ou Grover ou eu.

– Os esqueletos ainda estão lá fora – ela nos lembrou. – Precisamos continuar.

Ela navegou pelo deserto, debaixo do céu limpo e azul, a areia tão brilhante que doía olhar. Zöe sentou na frente com Thalia. Grover e eu nos sentamos no banco traseiro, encostados contra o reboque. O ar estava frio e seco, mas o clima bom parecia um insulto depois de perder Bianca.

Minha mão se fechou em volta da estatueta que tinha custado a vida dela. Eu ainda não podia dizer sequer de que deus ela deveria ser. Nico saberia.

Ó, deuses... o que eu ia dizer ao Nico?

Queria acreditar que Bianca ainda estava viva em algum lugar. Mas eu tinha o mau pressentimento de que ela realmente se fora.

– Deveria ter sido eu – disse. – Eu devia ter entrado no gigante.

– Não diga isso! – Grover entrou em pânico. – É ruim o suficiente que Annabeth se foi, e agora Bianca. Você acha que eu suportaria se... – Ele fungou. – Você acha que mais alguém seria meu melhor amigo?

– Ah, Grover...

Ele enxugou os olhos com um pano oleoso que deixou seu rosto sujo, como se tivesse feito pintura de guerra.

– Eu... Eu estou bem.

Mas ele não estava bem. Desde o encontro no Novo México – o que quer que tenha acontecido quando aquele vento selvagem passou – ele aparentava estar realmente frágil, ainda mais emotivo que o normal. Eu estava com medo de falar com ele sobre isso, pois ele podia começar a berrar.

Pelo menos tem uma coisa boa em ter um amigo que perde o controle mais do que você. Eu percebi que não podia ficar deprimido. Precisava deixar de lado os pensamentos sobre Bianca e nos manter indo em frente, do jeito que Thalia estava fazendo. Imaginei sobre o que ela e Zöe estavam falando na parte da frente do reboque.

O reboque ficou sem combustível na beirada de um desfiladeiro de rio. Isso estava bem, uma vez que a estrada havia terminado.

Thalia saiu e bateu a porta. Imediatamente um dos pneus furou.

– Ótimo. Agora o quê?

Examinei o horizonte. Não havia muito para ver. Deserto em todas as direções, amontoados ocasionais de montanhas áridas apareciam aqui e ali. O desfiladeiro era a única coisa interessante. O rio em si não era muito grande, talvez uns quarenta metros de largura, água esverdeada com poucas corredeiras, mas entalhava uma enorme cicatriz no deserto. Os penhascos rochosos desciam longe abaixo de nós.

– Há uma trilha – disse Grover. – Podemos chegar ao rio.

Tentei ver sobre o que ele estava falando, e finalmente notei uma minúscula saliência serpenteando ao longo da face do penhasco.

– É um caminho para bodes – eu disse.

– E? – ele perguntou.

– O resto de nós não é bode.

– Nós vamos conseguir – Grover falou. – Eu acho.

Pensei sobre isso. Já tinha encarado penhascos antes, mas não gostava deles. Então olhei para Thalia e vi o quanto ela tinha ficado pálida. O problema dela com alturas... ela nunca conseguiria fazer isso.

– Não – eu disse. – Eu, hã, acho que devemos ir mais longe rio acima.

Grover falou:

– Mas –

– Vamos – eu disse. – Uma caminhada não vai nos machucar.

Olhei de relance para Thalia. Os olhos dela diziam obrigada de forma breve. Nós seguimos o rio durante quase um quilômetro antes de chegarmos a um declive mais leve que descia até a água. Na margem havia um serviço de aluguel de canoas que estava fechado para a temporada, mas eu deixei uma pilha de dracmas dourados em cima do balcão e uma nota dizendo peguei duas canoas.

– Devemos subir o rio – Zöe disse. Era a primeira vez que eu a escutava falar desde o ferro-velho, e estava preocupado com como ela parecia mal, como uma pessoa gripada. – As corredeiras são muito velozes.

– Deixe isso comigo – falei. Nós colocamos as canoas na água.

Thalia me puxou de lado quando estávamos pegando os remos.

– Obrigada pelo que fez lá atrás.

– Não foi nada.

– Você realmente pode... – ela indicou as corredeiras com a cabeça. – Você sabe.

– Acho que sim. Geralmente sou bom com água.

– Você pode levar Zöe? – ela perguntou. – Acho que, hum, talvez você possa falar com ela.

– Ela não vai gostar disso.

– Por favor? Não sei se aguento ficar no mesmo bote que ela. Ela... ela está começando a me preocupar.

Era quase a última coisa que eu queria fazer, mas eu assenti.

Os ombros de Thalia relaxaram.

– Eu te devo uma.

– Duas.

– Uma e meia – Thalia disse.

Ela sorriu, e por um segundo me lembrei de que na verdade gostava dela quando ela não estava gritando comigo. Ela se virou e ajudou Grover a botar a canoa na água.

No final das contas, nem precisei controlar as correntezas. Logo que entramos no rio, olhei para a beirada do bote e encontrei um par de náiades me encarando. Elas pareciam garotas adolescentes comuns, do tipo que você encontra no shopping, exceto pelo fato de que estavam embaixo d’água.

Ei, eu disse.

Elas fizeram um som borbulhante que deve ter sido uma risadinha. Eu não estava certo. Tinha dificuldade para entender náiades.

Estamos subindo o rio, contei a elas. Vocês acham que podem...

Antes que eu pudesse terminar, cada náiade escolheu uma canoa e começou a empurrar rio acima. Nós partimos tão rápido que Grover caiu dentro de sua canoa com os cascos balançando no ar.

– Odeio náiades – resmungou Zöe.

Um jato de água esguichou da traseira do bote e atingiu Zöe na cara.

– Diabinhas! – Zöe buscou seu arco.

– Epa – eu disse. – Elas estão apenas brincando.

– Malditos espíritos aquáticos. Eles nunca me perdoaram.

– Perdoaram pelo quê?

Ela jogou o arco de volta sobre o ombro.

– Foi há muito tempo atrás. Não tem importância.

Nós aceleramos rio acima, os penhascos se elevando de ambos os lados.

– O que aconteceu com Bianca não foi culpa sua – disse a ela. – Foi minha culpa. Eu a deixei ir.

Pensei que isso daria a Zöe uma desculpa para começar a gritar comigo. Pelo menos isso poderia sacudi-la para que parasse de se sentir deprimida.

Em vez disso, seus ombros caíram bruscamente.

– Não, Percy. Eu a forcei a vir na missão. Eu estava muito ansiosa. Ela era uma poderosa meio-sangue. Tinha um coração gentil, também. Eu... eu pensei que ela seria a próxima tenente.

– Mas você é a tenente.

Ela agarrou a alça de sua aljava. Parecia mais cansada do que jamais a tinha visto.

– Nada dura para sempre, Percy. Por mais de dois mil anos eu liderei a Caça, e minha sabedoria não melhorou. Agora a própria Ártemis está em perigo.

– Olhe, você não pode se culpar por isso.

– Se eu tivesse insistido em ir com ela –

– Você acha que poderia ter lutado com algo poderoso o bastante para raptar Ártemis? Não há nada que você pudesse ter feito.

Zöe não respondeu.

Os penhascos ao longo do rio estavam ficando mais altos. Longas sombras caiam sobre a água, deixando-a muito mais gelada, ainda que o dia estivesse claro. Sem pensar sobre isso, tirei Contracorrente do meu bolso. Zöe olhou para a caneta e sua expressão era sofrida.

– Você fez isso – eu disse.

– Quem contou a ti?

– Eu tive um sonho sobre isso.

Ela me estudou. Eu tinha certeza de que ela me chamaria de louco, mas ela apenas suspirou.

– Foi um presente. E um engano.

– Quem era o herói? – perguntei.

Zöe balançou a cabeça.

– Não me faças dizer o nome dele. Jurei nunca mais pronunciá-lo.

– Você age como se eu devesse conhecê-lo.

– Tenho certeza que conheces, herói. Vocês garotos não querem todos ser justamente como ele?

Sua voz estava tão amargurada que decidi não perguntar o que ela quis dizer. Olhei para Contracorrente e, pela primeira vez, imaginei se era amaldiçoada.

– Sua mãe era uma deusa da água? – perguntei.

– Sim, Pleione. Ela teve cinco filhas. Minhas irmãs e eu. As Hespérides.

– Essas eram as garotas que viviam em um jardim nos limites do Oeste. Com a árvore de maçãs douradas e um dragão que a guardava.

– Sim – Zöe disse, saudosa. – Ladon.

– Mas não eram somente quatro irmãs?

– Agora são. Fui exilada. Esquecida. Obscurecida como se nunca tivesse existido.

– Por quê?

Zöe apontou para a minha caneta.

– Porque eu traí minha família e ajudei um herói. Tu também não vais achar isso na lenda. Ele nunca falou sobre mim. Depois que seu ataque direto a Ladon falhou, dei a ele a ideia de como roubar as maçãs, como enganar meu pai, mas ele levou todo o crédito.

– Mas –

Glub, glub, a náiade falou em minha mente. A canoa estava desacelerando. Olhei à frente, e vi por quê.

Isto era o mais longe que elas poderiam nos levar. O rio estava bloqueado. Uma represa do tamanho de um campo de futebol estava no nosso caminho.

– Represa Hoover – disse Thalia. – É enorme.

Nós ficamos na beira do rio, olhando acima para uma curva de concreto que se elevava entre os penhascos. Pessoas estavam caminhando ao longo do topo da represa. Elas eram tão pequenas que pareciam pulgas.

As náiades foram embora resmungando muito – não com palavras que eu pudesse entender, mas era óbvio que elas odiavam essa represa bloqueando o seu bonito rio.

Nossas canoas flutuaram de volta rio abaixo, rodopiando no rescaldo de uma das aberturas de descarga da represa.

– Mais de duzentos metros de altura – eu disse. – Construída na década de 30.

– Cinco milhões de acres cúbicos de água – Thalia falou.

Grover suspirou.

– Maior projeto de construção dos Estados Unidos.

Zöe nos encarou.

– Como vós sabeis tudo isso?

– Annabeth – eu disse. – Ela gostava de arquitetura.

– Ela era louca por monumentos – Thalia falou.

– Despejava fatos o tempo todo – Grover fungou. – Tão irritante.

– Queria que ela estivesse aqui – falei.

Os outros assentiram. Zöe ainda estava olhando estranhamente para nós, mas eu não me importei. Parecia ser um destino cruel que nós tínhamos chegado até a Represa Hoover, uma das favoritas de Annabeth, e ela não estava aqui para ver.

– Nós devíamos subir lá – eu disse. – Por ela. Apenas para dizer que fomos.

– Sois malucos – Zöe decidiu. – Mas é lá que a estrada está. – Ela apontou para um imenso estacionamento perto do topo da represa. – Então, passeio turístico será.

Tivemos que andar por quase uma hora antes de acharmos uma passagem que levasse para a estrada. Ela ficava no lado leste do rio. Então nós caminhamos de volta na direção da represa. Estava frio e ventando no topo. De um lado, um grande lago se espalhava, rodeado por áridas montanhas do deserto. No outro lado, a represa descia como a mais perigosa rampa de skate do mundo, indo até o rio mais de duzentos metros abaixo, e a água que espumava pelas aberturas da represa.

Thalia andava no meio da estrada, bem longe das beiradas. Grover continuava farejando o vento e parecendo nervoso. Ele não falou nada, mas eu sabia que ele havia sentindo cheiro de monstros.

– Quão perto eles estão? – perguntei.

Ele balançou a cabeça.

– Talvez não estejam perto. O vento na represa, o deserto ao nosso redor... o cheiro pode ser carregado por quilômetros. Mas está vindo de várias direções. Não gosto disso.

Eu também não. Já era quarta-feira, apenas dois dias antes do solstício de inverno, e nós tínhamos um longo caminho a percorrer. Não precisávamos de mais nenhum monstro.

– Tem uma lanchonete no centro de visitantes. – Thalia disse.

– Você esteve aqui antes? – perguntei.

– Uma vez. Para ver os guardiões. – Ela apontou para o fim da represa. Entalhadas na lateral do penhasco havia uma pequena praça e duas grandes estátuas de bronze. Elas meio que se pareciam com estatuetas do Oscar aladas.

– Elas foram dedicadas a Zeus quando a represa foi construída – disse Thalia. – Um presente de Atena.

Turistas estavam aglomerados em volta delas. Eles pareciam estar olhando para os pés das estátuas.

– O que eles estão fazendo? – perguntei.

– Esfregando os dedos – Thalia disse. – Eles acham que traz sorte.

– Por quê?

Ela balançou a cabeça.

– Mortais têm ideias malucas. Eles não sabem que as estátuas são consagradas para Zeus, mas sabem que há alguma coisa especial sobre elas.

– Quando você esteve aqui da última vez, elas falaram com você ou algo assim?

A expressão de Thalia escureceu. Eu podia dizer que ela viera aqui antes esperando exatamente isso – algum tipo de sinal do seu pai. Alguma ligação.

– Não. Elas não fazem nada. São apenas grandes estátuas de metal.

Pensei na última grande estátua de metal que havíamos encontrado. Aquilo não tinha ido muito bem. Mas decidi não tocar no assunto.

– Vamos achar a droga da lanchonete. – Zoë disse. – Devemos comer enquanto podemos.

Grover esboçou um sorriso.

– A droga da lanchonete?

Zöe piscou.

– Sim. O que é engraçado?

– Nada – Grover disse, tentando manter o rosto sério. – Eu poderia comer umas drogas de batatas fritas.

Até Thalia riu com essa.

– E eu preciso usar a droga de um banheiro.

Talvez fosse o fato de que nós estávamos tão cansados e esgotados emocionalmente, mas comecei a gargalhar, e Thalia e Grover se juntaram a mim, enquanto Zöe olhava para nós.

– Eu não entendo.

– Eu quero usar a droga fonte de água – Grover disse.

– E... – Thalia tentou tomar fôlego. – Quero comprar uma droga de camiseta.

Rolei de rir, e continuaria gargalhando o dia inteiro, mas escutei um barulho:

– Moooo.

O sorriso derreteu no meu rosto. Imaginei se o barulho estava apenas na minha cabeça, mas Grover também parara de rir. Ele estava olhando ao redor, confuso.

– Eu acabei de escutar uma vaca?

– Uma droga de vaca? – riu Thalia.

– Não – disse Grover. – É sério.

Zöe escutou.

– Eu não ouço nada.

Thalia estava olhando para mim.

– Percy, você está bem?

– Sim – eu disse. – Vão na frente. Eu alcanço vocês daqui a pouco.

– O que está errado? – Grover perguntou.

– Nada – falei. – Eu... eu apenas preciso de um minuto. Para pensar.

Eles hesitaram, mas acho que eu aparentava estar chateado, porque eles finalmente entraram no centro de visitantes sem mim. Assim que eles se foram, corri até o limite norte da represa e olhei em volta.

– Moo.

Ela estava no lago, quase dez metros abaixo, mas eu podia vê-la claramente: minha amiga do Estuário de Long Island, a vaca-serpente Bessie.

Olhei ao redor. Havia grupos de crianças correndo ao longo da represa. Vários cidadãos idosos. Algumas famílias. Mas ninguém aparentava estar prestando atenção em Bessie ainda.

– O que você está fazendo aqui? – perguntei a ela.

– Moo!

A voz dela era alarmada, como se estivesse tentando me avisar sobre algo.

– Como você chegou aqui? – perguntei. Estávamos a milhares de quilômetros de Long Island, centenas de quilômetros no interior. De maneira nenhuma ela poderia ter nadado até aqui. Ainda assim, aqui estava ela.

Bessie nadou em círculo e bateu sua cabeça contra a lateral da represa.

– Moo!

Ela queria que eu fosse com ela. Estava me dizendo para me apressar.

– Não posso – disse a ela. – Meus amigos estão lá dentro.

Ela olhou para mim com seus tristes olhos castanhos. Então ela fez mais um ruído de urgência “Mooo!”, deu uma cambalhota e desapareceu dentro d’água.

Eu hesitei. Algo estava errado. Ela estava tentando me dizer isso. Considerei pular por cima da borda e segui-la, mas então eu fiquei tenso. Os pelos dos meus braços se eriçaram. Olhei abaixo para a estrada da represa em direção ao leste e vi dois homens andando vagarosamente na minha direção. Eles vestiam roupas de camuflagem cinza que tremeluziam por cima de seus corpos esqueléticos. Eles passaram por um grupo de crianças e as empurraram para o lado. Uma criança gritou “Ei!”. Um dos guerreiros se virou, sua face se transformando momentaneamente em uma caveira.

– Ah! – a criança berrou, e todo seu grupo recuou.

Corri para o centro de visitantes.

Estava quase nas escadas quando escutei pneus cantando. No lado oeste da represa, um furgão preto desviou rapidamente para uma parada no meio da estrada, quase batendo em alguns idosos.

As portas do furgão se abriram e mais guerreiros esqueleto se precipitaram para fora. Eu estava cercado. Desci disparado pelas escadas e através da entrada do museu. O segurança no detector de metais berrou “Ei, garoto!” Mas eu não parei. Corri pelo meio das exibições e me agachei atrás de um grupo de passeio. Procurei pelos meus amigos, mas não conseguia vê-los em lugar nenhum. Onde era a porcaria da lanchonete?

– Pare! – o cara do detector de metais gritou.

Não havia outro lugar para ir a não ser o elevador com o grupo de passeio. Eu me esgueirei para dentro assim que a porta se fechou.

– Vamos descer mais de duzentos metros – nossa guia turística falou, animada. Ela era uma guarda-florestal, com longo cabelo preto puxado para trás num rabo-de-cavalo e óculos coloridos. Acho que ela não percebeu que eu estava sendo perseguido. – Não se preocupem, senhoras e senhores, o elevador dificilmente quebra.

– Ele vai até a lanchonete? – perguntei a ela.

Algumas pessoas atrás de mim abafaram o riso. A guia turística me olhou. Alguma coisa no olhar dela fez minha pele formigar.

– Para as turbinas, meu jovem – a moça falou. – Você não estava escutando a minha fascinante apresentação lá em cima?

– Oh, hum, claro. Tem outro jeito de sair da represa?

– É um beco sem saída – um turista atrás de mim disse. – Pelos céus. O único jeito de sair é pelo outro elevador.

As portas se abriram.

– Sigam em frente, pessoal – a guia turística nos disse. – Outro guarda-florestal está esperando por vocês no fim do corredor.

Não tive muita escolha a não ser sair com o grupo.

– E meu jovem – a guia turística chamou. Olhei para trás. Ela havia tirado seus óculos. Seus olhos eram surpreendentemente cinzas, como nuvens de tempestade. – Existe sempre uma saída para aqueles inteligentes o bastante para encontrá-la.

As portas se fecharam com a guia turística ainda dentro, deixando-me sozinho.

Antes que eu pudesse pensar muito sobre a mulher no elevador, um ding veio do canto. O segundo elevador estava abrindo, e eu escutei um som inconfundível – o tinir de dentes esqueléticos.

Corri até o grupo turístico, por um túnel entalhado na pedra sólida. Parecia continuar para sempre. As paredes eram úmidas, e o ar zunia com eletricidade e o rugido da água.

Saí em uma sacada em forma de U que dava vista para esta enorme área de armazéns. Quinze metros abaixo, enormes turbinas estavam ligadas. Era uma sala grande, mas eu não via nenhuma outra saída, a menos que eu quisesse pular dentro das turbinas e ser triturado para gerar eletricidade. E eu não queria.

Outro guia turístico estava falando no microfone, contando aos turistas sobre os suprimentos de água em Nevada. Rezei para que Thalia, Zöe e Grover estivessem bem. Eles podiam já ter sido capturados, ou estar comendo na lanchonete, completamente ignorantes de que estávamos sendo cercados. E que estupidez a minha: eu havia me aprisionado num buraco centenas de metros abaixo da superfície.

Fiz meu caminho ao redor da multidão, tentando não parecer óbvio. Havia um corredor no outro lado da sacada – talvez um lugar onde pudesse me esconder. Mantive minha mão em Contracorrente, pronto para atacar.

No momento em que cheguei ao lado oposto da sacada, meus nervos dispararam. Fiquei de costas para o pequeno corredor e observei o túnel pelo qual viera. Então, bem atrás de mim eu escutei um agudo Chhh! como a voz de um esqueleto.

Sem pensar, destampei Contracorrente e girei, golpeando com minha espada. A garota que eu tinha acabado de tentar fatiar ao meio ganiu e deixou cair seu guardanapo.

– Ó, meu deus! – ela gritou. – Você sempre mata as pessoas quando elas assoam o nariz?

A primeira coisa que me veio à cabeça foi que a espada não a tinha machucado. Havia passado limpa através do seu corpo, inofensivamente.

– Você é mortal!

Ela olhou para mim incrédula.

– O que isso quer dizer? É claro que sou mortal! Como você passou essa espada pela segurança?

– Eu não – espere, você pode ver que é uma espada?

A garota rolou os olhos, que eram verdes como os meus. Ela tinha cabelo crespo castanho avermelhado. Seu nariz também estava vermelho, como se estivesse gripada. Ela vestia um grande moletom grená de Harvard e jeans cobertos de manchas de canetinhas e pequenos buracos, como se ela usasse o tempo livre para espetá-los com um garfo.

– Bem, ou é uma espada ou é o maior palito de dente do mundo – ela disse. – E por que não me feriu? Quero dizer, não que eu esteja reclamando. Quem é você? E, uau, o que é isso que você está vestindo? É feito de pelo de leão?

Ela me fez tantas perguntas, tão rápido, que era como se ela estivesse jogando pedras em mim. Eu não conseguia pensar no que falar. Olhei para as minhas mangas para ver se o casaco do Leão de Neméia tinha de algum jeito voltado a ser pelo, mas continuava parecendo um casaco marrom de inverno pra mim.

Eu sabia que os guerreiros esqueleto ainda estavam me perseguindo. Não havia tempo a perder. Mas eu apenas encarei a menina ruiva. Então me lembrei do que Thalia fizera no Westover Hall para enganar os professores. Talvez eu pudesse manipular a Névoa. Eu me concentrei bastante e estalei meus dedos.

– Você não vê uma espada – eu disse à garota. – É apenas uma caneta esferográfica.

Ela piscou.

– Hum... não. É uma espada, seu esquisito.

– Quem é você? – exigi.

Ela retrucou, indignada.

– Rachel Elizabeth Dare. Agora, você vai responder às minhas perguntas ou devo gritar pelos seguranças?

– Não! – eu disse. – Quero dizer, estou meio que com pressa. Estou com problemas.

– Com pressa ou com problemas?

– Hum, acho que os dois.

Ela olhou sobre os meus ombros e seus olhos se arregalaram.

– Banheiro!

– O quê?

– Banheiro! Atrás de mim! Agora!

Não sei por que, mas eu a escutei. Escorreguei para dentro do banheiro masculino e deixei Rachel Elizabeth Dare permanecer do lado de fora. Depois, aquilo me pareceu covarde. Também estou quase certo de que salvou minha vida.

Ouvi os sons tirintantes e sibilantes dos esqueletos enquanto eles se aproximavam. Meu aperto se intensificou em Contracorrente. O que eu estava pensando? Eu deixei uma garota mortal lá fora para morrer. Estava me preparando para irromper e lutar quando Rachel Elizabeth Dare começou a falar no seu jeito de metralhadora automática.

– Ó, meu deus! Vocês viram aquele garoto? Já era tempo de vocês chegarem aqui. Ele tentou me matar! Ele tinha uma espada, pelo amor de Deus. Vocês da segurança deixaram um espadachim lunático entrar em um monumento nacional? Quero dizer, nossa! Ele correu na direção daquelas coisas das turbinas. Acho que ele foi pela lateral ou algo assim. Talvez tenha caído.

Os esqueletos tirintaram excitadamente. Eu os escutei indo embora. Rachel abriu a porta.

– Tudo limpo. Mas é melhor você se apressar.

Ela parecia abalada. Sua face estava pálida e suada. Espiei o canto. Três guerreiros esqueleto estavam correndo em direção ao outro extremo da sacada. O caminho para o elevador estava livre por poucos segundos.

– Eu te devo uma, Rachel Elizabeth Dare.

– O que são essas coisas? – ela perguntou. – Pareciam...

– Esqueletos?

Ela assentiu, apreensiva.

– Faça um favor a si mesma – eu disse. – Esqueça isso. Esqueça que alguma vez me viu.

– Esquecer que você tentou me matar?

– É. Isso também.

– Mas quem é você?

– Percy – eu comecei a dizer. Então os esqueletos se viraram. – Tenho que ir!

– Que tipo de nome é Percy Tenho-que-ir?

Eu disparei para a saída.

A lanchonete estava repleta de crianças aproveitando a melhor parte do passeio – o almoço da represa. Thalia, Zöe e Grover estavam justamente se sentando com suas comidas.

– Temos que ir – arquejei. – Agora!

– Mas nós acabamos de pegar nossos burritos! – Thalia disse.

Zöe se levantou, murmurando um antigo insulto grego.

– Ele está certo! Olhai.

As janelas da lanchonete envolviam todo o andar de observação, o que nos dava uma linda visão panorâmica do exército de esqueletos que viera nos matar. Contei dois no lado leste da estrada da represa, bloqueando o caminho para o Arizona. Mais três no lado oeste, guardando Nevada. Todos estavam armados com cassetetes e pistolas. Mas nosso problema imediato estava bem mais próximo. Os três guerreiros esqueleto que estiveram me perseguindo na sala das turbinas apareciam agora nas escadas. Eles me viram do outro lado da lanchonete e rangeram seus dentes.

– Elevador! – Grover disse. Disparamos naquela direção, mas as portas se abriram com um agradável ding, e mais três guerreiros pisaram para fora. Todos os guerreiros foram contabilizados, menos o que Bianca tinha explodido em chamas no Novo México. Estávamos completamente cercados.

Então Grover teve uma ideia brilhante, totalmente no estilo Grover.

– Guerra de burritos! – ele gritou, e arremessou seu Guacamole Grande no esqueleto mais próximo. Agora, se você nunca foi atingido por um burrito voador, considere-se sortudo. Em termos de projéteis letais, está no topo da lista junto com granadas e balas de canhão. O lanche de Grover acertou o esqueleto e derrubou completamente seu crânio de seus ombros. Não tenho certeza do que as outras crianças na lanchonete viram, mas elas enlouqueceram e começaram a jogar seus burritos e cestas de batatas fritas e refrigerantes umas nas outras, guinchando e gritando.

Os esqueletos tentaram mirar suas armas, mas foi inútil. Corpos e comidas e bebidas estavam voando por toda parte. No caos, Thalia e eu derrubamos os outros dois esqueletos nas escadas e os mandamos voando para a mesa de condimentos. Então nós todos corremos escada abaixo, Guacamoles Grandes zunindo pelas nossas cabeças.

– E agora? – Grover perguntou quando irrompemos ao ar livre.

Eu não tinha uma resposta. Os guerreiros na estrada estavam se aproximando por ambos os lados. Atravessamos a rua correndo para o pavilhão com as estátuas aladas de bronze, mas isso apenas colocou nossas costas contra a montanha. Os esqueletos se adiantaram, formando um semicírculo à nossa volta. Seus irmãos da lanchonete estavam correndo para se juntar a eles. Um ainda estava colocando seu crânio de volta sobre os ombros. Outro estava coberto de catchup e mostarda. Mais dois tinham burritos alojados entre as suas costelas. Eles não pareciam felizes com isso. Sacaram seus cassetetes e avançaram.

– Quatro contra onze – Zöe murmurou. – E eles não podem morrer.

– Foi legal me aventurar com vocês – Grover disse, sua voz trêmula.

Algo brilhante capturou minha atenção pelo canto do meu olho. Olhei às minhas costas, para o pé da estátua.

– Uau – eu disse. – Os dedos deles realmente são brilhantes.

– Percy! – Thalia falou. – Este não é o momento.

Mas não consegui parar de encarar os dois caras gigantes de bronze com altas asas cortantes como abridores de cartas. Eles estavam marrons por sua exposição ao clima, exceto pelos dedos dos pés, que brilhavam como moedas novas por causa de todas as vezes que as pessoas os esfregaram para ter sorte.

Boa sorte. A benção de Zeus.

Pensei sobre a guia turística no elevador. Seus olhos cinzentos e seu sorriso. O que ela dissera? Existe sempre uma saída para aqueles inteligentes o bastante para encontrá-la.

– Thalia – eu disse. – Reze para o seu pai.

Ela me olhou fixamente.

– Ele nunca responde.

– Apenas esta vez – pedi. – Peça ajuda. Acho... acho que as estátuas podem nos dar alguma sorte.

Seis esqueletos ergueram suas armas. Os outros cinco avançaram com cassetetes. Quinze metros de distância. Dez metros.

– Faça logo! – gritei.

– Não! – Thalia disse. – Ele não vai me responder.

– Desta vez é diferente!

– Quem disse?

Eu hesitei.

– Atena, eu acho.

Thalia franziu a testa como se tivesse certeza que eu havia enlouquecido.

– Tente. – Grover pediu.

Thalia fechou os olhos. Seus lábios se mexeram em uma prece silenciosa. Coloquei minha própria prece para a mãe de Annabeth, esperando que eu estivesse certo sobre ter sido ela naquele elevador – sobre ela estar tentando nos ajudar a salvar sua filha.

E nada aconteceu.

Os esqueletos se aproximaram. Levantei Contracorrente para me defender. Thalia ergueu seu escudo. Zöe empurrou Grover para trás dela e mirou uma flecha na cabeça de um esqueleto.

Uma sombra caiu sobre mim. Pensei que talvez fosse a sombra da morte. Então percebi que era a sombra de uma asa enorme. Os esqueletos olharam para cima tarde demais. Um lampejo de bronze, e todos os cinco carregando cassetetes foram varridos para o lado.

Os outros esqueletos abriram fogo. Levantei meu casaco de leão para me proteger, mas nem precisava. Os anjos de bronze passaram à nossa frente e entrelaçaram suas asas como escudos. Balas retiniam nelas como chuva em teto ondulado. Ambos os anjos golpearam para fora, e os esqueletos saíram voando pela estrada.

– Cara, é tão bom levantar! – o primeiro anjo disse. Sua voz soava metálica e rústica, como se ele não tivesse bebido nada desde que fora construído.

– ‘Cê’ vai olhar pros meus dedos? – o outro falou. – Santo Zeus, o que esses turistas estavam pensando?

Por mais atordoado que eu estivesse com os anjos, eu estava mais preocupado com os esqueletos. Alguns deles estavam se levantando de novo, reagrupando-se, mãos ossudas tateando por suas armas.

– Problema! – eu disse.

– Tirem-nos daqui! – Thalia gritou.

Os dois anjos olharam para ela.

– Filha de Zeus?

– Sim!

– Posso ter um por favor, Senhorita Filha de Zeus? – um anjo perguntou.

– Por favor!

Os anjos olharam um para o outro e encolheram os ombros.

– Podia me esticar um pouco – um decidiu.

De repente um deles agarrou Thalia e a mim, o outro agarrou Zöe e Grover, e nós voamos direto para cima, sobre a represa e o rio, os guerreiros esqueleto diminuindo até serem minúsculos pontos abaixo de nós e o som de tiros ecoando nas laterais das montanhas.

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