quinta-feira, 29 de agosto de 2013

A Maldição do titã - capitulo 5



                             Eu faço uma ligação subaquática    

Eu nunca tinha visto o Acampamento Meio-Sangue no inverno antes, e a neve me surpreendeu.

Veja, o acampamento tem controle climático de última geração. Nada passa pelas fronteiras a não ser que o diretor, Sr. D, queira isso. Eu pensei que estaria quente e ensolarado, mas ao invés disso a neve estava permitida a cair levemente. A geada cobria a pista de bigas e os campos de morango. Os chalés estavam decorados com pequenas luzes cintilantes, como luzes de Natal, exceto que elas pareciam bolas de fogo de verdade. Mais luzes brilhavam na floresta, e o mais estranho de tudo, um fogo tremeluziu na janela do sótão da Casa Grande, onde habitava o Oráculo, aprisionado em um velho corpo mumificado. Perguntei-me se o espírito de Delfos estava assando marshmallows lá em cima ou alguma coisa assim.

– Uau – Nico falou enquanto descia do furgão. – Isso é um muro de escalada?

– É – respondi.

– Porque tem lava escorrendo por ele?

– Um pequeno desafio extra. Venha, vou apresentá-lo a Quíron. Zoë, você conhece –

– Eu conheço Quíron – Zoë falou duramente. – Dizei a ele que nós estaremos no Chalé Oito. Caçadoras, sigam-me.

– Vou mostrá-las o caminho – ofereceu Grover.

– Nós sabemos o caminho.

– Ah, sério, isso não é problema. É fácil se perder aqui, se você não – ele tropeçou em uma canoa e voltou ainda falando – como meu velho pai bode costumava falar! Vamos lá!

Zoë rolou os olhos, mas eu acho que ela percebeu que não se livraria de Grover. As Caçadoras puseram suas sacolas e arcos sobre os ombros e partiram em direção aos chalés. Quando Bianca di Angelo estava saindo, ela se abaixou e sussurrou algo no ouvido de seu irmão. Ela olhou para ele esperando resposta, mas Nico apenas franziu as sobrancelhas e se afastou.

– Cuidem-se, queridas! – Apolo falou para as Caçadoras. Ele piscou para mim. – Tome cuidado com essas profecias, Percy. Vejo você em breve.

– O que você quer dizer?

Em vez de responder, ele pulou de volta para dentro do furgão.

– Até mais, Thalia – ele disse. – E, hum, fique bem!

Ele deu a ela um sorriso cruel, como se soubesse alguma coisa que ela não sabia. Então ele fechou as portas e ligou o motor. Eu me virei de lado enquanto a carruagem solar partia numa explosão de calor. Quando olhei de volta, o lago estava evaporando. A Maserati vermelha subiu alto por cima da floresta, brilhando mais forte e escalando mais alto até que desapareceu em um raio de sol. Nico ainda parecia irritado. Eu imaginava o que sua irmã havia lhe dito.

– Quem é Quíron? – ele perguntou. – Não tenho sua estatueta.

– Nosso diretor de atividades – falei. – Ele é... Bem, você verá.

– Se essas garotas Caçadoras não gostam dele – resmungou Nico, – isso é bom o suficiente para mim. Vamos.

A segunda coisa que me deixou surpreso sobre o acampamento foi o quanto ele estava vazio. Quero dizer, eu sabia que a maioria dos meio-sangues treinava somente durante o verão. Apenas aqueles que passam o ano inteiro estariam aqui – os que não tinham casas para ir, ou que seriam muito atacados por monstros se saíssem. Mas também não parecia haver muitos deles.

Avistei Charles Beckendorf do chalé de Hefesto alimentando a fornalha do lado de fora do depósito de armas. Os irmãos Stoll, Travis e Connor, do chalé de Hermes, estavam tentando arrombar a tranca da loja do acampamento. Algumas poucas crianças do chalé de Ares estavam fazendo uma guerra de neve com as Ninfas nos limites da floresta. Era só isso. Até minha antiga rival do chalé de Ares, Clarisse, não parecia estar por perto.

A Casa Grande estava decorada com fios amarelos e vermelhos de bolas de fogo que aqueciam a varanda, mas não ateavam fogo em nada. Lá dentro, chamas crepitavam na lareira. O ar cheirava a chocolate quente. Sr. D, o diretor do acampamento, e Quíron estavam jogando cartas calmamente na sala.

A barba marrom de Quíron estava mais desgrenhada no inverno. Seu cabelo enrolado tinha crescido um pouco mais. Ele não estava no cargo de professor este ano, então acho que estava permitido ficar um pouco mais à vontade. Ele vestia um suéter felpudo com o desenho de uma pegada de casco, e tinha um cobertor no seu colo que escondia quase completamente a cadeira de rodas.

Ele sorriu quando nos viu.

– Percy! Thalia! Ah, e esse deve ser –

– Nico di Angelo – falei. – Ele e sua irmã são meio-sangues.

Quíron deu um suspiro de alívio.

– Vocês obtiveram sucesso, então.

– Bem...

O sorriso dele derreteu.

– O que está errado? E onde está Annabeth?

– Oh, querido – Sr. D disse numa voz chateada, – não mais um perdido.

Estava tentando não prestar atenção no Sr. D, mas era difícil ignorá-lo em seu agasalho laranja-neon de pele de leopardo e seus sapatos roxos de corrida. (Como se o Sr. D tivesse corrido ao menos um dia em sua vida imortal.) Uma coroa de louros dourada estava inclinada de lado em seu cabelo escuro e encaracolado, o que devia significar sua vitória na última rodada de cartas.

– O que você quer dizer? – perguntou Thalia – Quem mais está perdido?

Nesse exato momento, Grover trotou dentro da sala, sorrindo como louco. Ele tinha um olho roxo e linhas vermelhas em seu rosto que pareciam a marca de um tapa.

– As Caçadoras estão todas acomodadas!

Quíron franziu a testa.

– As Caçadoras, é? Vejo que temos muito o que conversar. – Ele olhou Nico de relance. – Grover, talvez você deva levar nosso jovem amigo para a gruta e mostrar a ele nosso filme de orientação.

– Mas... Oh, tudo bem. Sim, senhor.

– Filme de orientação? – perguntou Nico. – É censura livre ou até 10 anos? Porque Bianca é meio rigorosa.

– É censura 13 anos – Grover falou.

– Legal! – Nico o seguiu felizmente para fora da sala.

– Agora – Quíron falou para Thalia e eu, – talvez vocês dois devam se sentar e nos contar a história completa.

Quando terminamos, Quíron se virou para o Sr. D.

– Nós deveríamos mandar uma busca por Annabeth imediatamente.

– Eu vou – Thalia e eu falamos ao mesmo tempo.

Sr. D fungou.

– Certamente não!

Thalia e eu começamos a reclamar, mas o Sr. D ergueu sua mão. Ele tinha aquele fogo arroxeado e furioso em seus olhos que geralmente dizia que alguma coisa ruim e divina ia acontecer se a gente não se calasse.

– Pelo que vocês me disseram – Sr. D disse, – nós saímos empatados nessa escapada. Nós, ah, infelizmente perdemos Annie Bell...

– Annabeth – eu falei rapidamente. Ela ia para o acampamento desde os sete anos, e o Sr. D ainda fingia não conhecer o nome dela.

– Sim, sim – ele falou. – E vocês arranjaram um garotinho chato para substituí-la. Então não vejo razão para arriscar outros meio-sangues num resgate ridículo. A possibilidade é muito grande que essa menina Annie esteja morta.

Eu queria estrangular o Sr. D. Não era justo que Zeus tivesse mandado ele aqui para ressecar como diretor do acampamento por cem anos. Era para ser uma punição pelo mau comportamento do Sr. D no Olimpo, mas acabou sendo uma punição para todos nós.

– Annabeth ainda pode estar viva – disse Quíron, mas eu podia ver que ele estava tendo problemas em soar otimista. Ele praticamente criou Annabeth todos esses anos em que ela era uma campista integral, antes de ela dar uma segunda chance a seu pai e sua madrasta. – Ela é muito brilhante. Se... se nossos inimigos a tiverem, ela vai tentar jogar por tempo. Ela pode até fingir cooperar.

– Isso é verdade – Thalia falou. – Luke iria querer ela viva.

– Se for esse o caso – disse Sr. D, – receio que ela terá que ser esperta o bastante para fugir por conta própria.

Eu me levantei da mesa.

– Percy. – O tom de Quíron estava bastante alarmado. No fundo da minha mente, eu sabia que o Sr. D não era alguém para contrariar. Nem se você fosse um impulsivo garoto com hiperatividade como eu, ele não daria nenhuma folga. Mas eu estava com tanta raiva que não me importei.

– Você está feliz de ter perdido outro campista – falei. – Você gostaria que todos nós sumíssemos!

Sr. D abafou um bocejo.

– Você tem um argumento?

– É – eu rosnei. – Só porque você foi mandado aqui como punição não significa que você tem que ser um babaca preguiçoso! Esta é a sua civilização, também. Talvez você pudesse tentar ajudar um pouco!

Por um segundo, não houve barulho exceto pelo crepitar do fogo. A luz refletia nos olhos do Sr. D, dando a ele um olhar sinistro. Ele abriu sua boca para dizer algo – provavelmente uma maldição que ia me explodir em pedacinhos – quando Nico entrou na sala, seguido por Grover.

– TÃO LEGAL! – gritou Nico, oferecendo as mãos para Quíron. – Você é... você é um centauro!

Quíron deu um sorriso nervoso.

– Sim, Sr. di Angelo, como queira. Porém, eu prefiro ficar na forma humana nessa cadeira de rodas para, hã, primeiros encontros.

– E, uau! – Ele olhou para o Sr. D. – Você é o cara do vinho? Não pode ser!

Sr. D tirou os olhos de mim e deu a Nico um olhar de repugnância.

– O cara do vinho?

– Dioniso, certo? Oh, uau! Eu tenho sua estatueta!

– Minha estatueta.

– No meu jogo Mitomagia. E uma carta holográfica, também! E mesmo que você tenha apenas quinhentos pontos de ataque e todo mundo ache que você é a carta de deus mais fajuta, eu realmente acho que seus poderes são legais!

– Ah – Sr. D parecia verdadeiramente perplexo, o que provavelmente salvou minha vida. – Bem, isso é... gratificante.

– Percy – Quíron falou rapidamente, – você e Thalia desçam para os chalés. Informem aos campistas que iremos jogar captura da bandeira amanhã à tarde.

– Captura da bandeira? – perguntei. – Mas nós não temos suficientes –

– É uma tradição – disse Quíron. – Uma partida amistosa, sempre que as Caçadoras visitam.

– É – murmurou Thalia. – Aposto que é realmente amistosa.

Quíron agitou a cabeça na direção do Sr. D, que continuava franzindo a testa enquanto Nico falava de quantos pontos de defesa todos os deuses tinham no seu jogo.

– Corram agora – Quíron nos disse.

– Ah, certo – falou Thalia. – Vamos, Percy.

Ela me arrastou para fora da Casa Grande antes que Dioniso pudesse lembrar que pretendia me matar.

–– Você já tem Ares contra você – Thalia me lembrou enquanto nós marchávamos em direção aos chalés. – Você precisa de outro inimigo imortal?

Ela estava certa. Em meu primeiro verão como campista entrei numa briga com Ares, agora ele e todos os seus filhos queriam me matar. Eu não precisava aborrecer Dioniso também.

– Desculpe – falei. – Não pude evitar. É apenas tão injusto.

Ela parou perto do arsenal e olhou através do vale, em direção ao topo da Colina Meio-Sangue. Seu pinheiro ainda estava lá, o Velocino de Ouro brilhando no seu ramo mais baixo. A magia da árvore ainda protegia as fronteiras do acampamento, mas não usava mais o espírito de Thalia como energia.

– Percy, tudo é injusto – balbuciou Thalia. – Às vezes eu desejo...

Ela não terminou, mas seu tom era tão triste que eu senti pena dela. Com seu cabelo negro irregular e suas roupas punk pretas, um velho casacão de lã amarrado em volta dela, ela parecia algum tipo de corvo gigante, completamente fora da paisagem esbranquiçada.

– Nós vamos pegar Annabeth de volta – prometi. – Apenas não sei como, ainda.

– Primeiro eu descubro que Luke está perdido – ela falou. – Agora Annabeth...

– Não pense assim.

– Você está certo. – Ela se endireitou. – Nós acharemos um jeito.

Na quadra de basquete, algumas Caçadoras estavam arremessando nos aros. Uma delas estava discutindo com um cara do chalé de Ares. O garoto de Ares tinha a mão na sua espada e a garota Caçadora parecia que ia trocar a bola de basquete por um arco e flecha a qualquer segundo.

– Eu vou acabar com aquilo – Thalia disse. – Você circula pelos chalés. Fale para todo mundo sobre a captura da bandeira amanhã.

– Tudo bem. Você devia ser capitã do time.

– Não, não – ela falou. – Você está há mais tempo no acampamento. Você faz isso.

– Nós podemos, hã... ter um co-capitão ou algo assim.

Ela pareceu se sentir tão confortável quanto eu em relação a isso, mas ela assentiu. Enquanto ela se encaminhava para a quadra, eu falei:

– Hey, Thalia.

– Sim?

– Desculpe-me pelo que aconteceu no Westover. Eu devia ter esperado por vocês.

– Tá ok, Percy. Eu provavelmente teria feito a mesma coisa. – Ela trocava de um pé para o outro, como se estivesse tentando decidir se falava mais ou não. – Sabe, você me perguntou sobre minha mãe e eu meio que fui grossa com você. É que... eu voltei para encontrá-la depois de sete anos, e descobri que ela tinha morrido em Los Angeles. Ela, hum... ela era uma alcoólatra pesada, e aparentemente estava dirigindo tarde em uma noite há cerca de dois anos, e... – Thalia piscou forte.

– Sinto muito.

– Sim, bem. Não... não é como se alguma vez nós tivéssemos sido próximas. Eu fugi quando tinha dez anos. Os melhores dois anos de minha vida foram quando estava correndo por aí com Luke e Annabeth. Mas mesmo assim...

– Por isso que você teve problemas com o furgão do sol.

Ela me deu um olhar desconfiado.

– O que você quer dizer?

– O jeito como você ficou tensa. Você devia estar pensando na sua mãe, não querendo ficar atrás do volante.

Eu me arrependi de ter falado qualquer coisa. A expressão de Thalia estava perigosamente parecida com a de Zeus, na única vez em que eu o tinha visto se zangar – como se a qualquer minuto, os olhos dela fossem disparar um milhão de volts.

– É – ela murmurou. – É, deve ter sido isso.

Ela marchou em direção à quadra, onde o campista de Ares e a Caçadora estavam tentando se matar com uma espada e uma bola de basquete.

Os chalés eram o mais esquisito conjunto de prédios que eu já tinha visto. As grandes construções de colunas brancas de Zeus e Hera, Chalés Um e Dois, ficavam no meio, com cinco chalés de deuses à esquerda e cinco chalés de deusas à direita, então eles formavam um U em torno do gramado central e da churrasqueira.

Eu fiz as voltas, falando para todo mundo da captura da bandeira. Acordei uma criança de Ares do seu cochilo do meio-dia e ele gritou para eu ir embora. Quando perguntei a ele onde estava Clarisse, ele falou:

– Foi numa missão para Quíron. Supersecreta!

– Ela está bem?

– Não escuto dela faz um mês. Ela está desaparecida em ação. Como seu traseiro vai estar se você não der o fora daqui!

Decidi deixá-lo voltar a dormir. Finalmente eu cheguei ao Chalé Três, o chalé de Poseidon. Era uma construção baixa e cinza talhada em pedra marinha, com conchas e fósseis de coral gravados na rocha. Dentro, estava vazio como sempre, exceto pelo meu beliche. Um chifre de Minotauro estava pendurado na parede ao lado do meu travesseiro.

Eu tirei o boné de beisebol de Annabeth da minha mochila e o coloquei no criado mudo. Devolveria para ela quando a encontrasse. E eu iria encontrá-la. Tirei meu relógio de pulso e ativei o escudo. Ele rangeu barulhento enquanto se espiralava para fora. Os espinhos de Dr. Espinheiro dentearam o metal em uma dúzia de lugares. Um corte profundo impedia o escudo de se abrir completamente, então estava parecendo uma pizza com duas fatias a menos. As bonitas figuras de metal que meu irmão tinha feito estavam todas destruídas. Na figura em que eu e Annabeth combatíamos a Hidra, parecia que um meteoro havia aberto uma cratera na minha cabeça. Pendurei o escudo em seu gancho, ao lado do chifre do Minotauro, mas era doloroso olhar agora. Talvez Beckendorf do chalé de Hefesto pudesse consertá-lo para mim. Ele era o melhor ferreiro de armas do acampamento. Eu perguntaria a ele no jantar.

Eu estava olhando para o escudo quando notei um som estranho – água gorgolejando – e percebi que tinha alguma coisa nova no quarto. No fundo do chalé estava uma grande bacia de pedra marinha cinza, com uma bica que nem a cabeça de um peixe gravada na pedra. De sua boca saía um fluxo de água, uma fonte de água salgada que gotejava dentro do tanque. A água devia estar quente, porque criava uma névoa no ar frio do inverno como uma sauna. Aquilo fazia o quarto parecer morno e lembrava o verão, fresco com o cheiro do mar.

Andei para o tanque. Não havia nenhum recado nem nada, mas eu sabia que só podia ser um presente de Poseidon. Olhei para a água e falei:

– Obrigado, pai.

A superfície ondulou. No fundo do tanque, moedas cintilaram – mais ou menos uma dúzia de dracmas dourados. Eu percebi para que servia a fonte. Era um lembrete para manter contato com a minha família.

Eu abri a janela mais próxima, e a luz do sol de inverno produziu um arco-íris na névoa. Então eu pesquei uma moeda de dentro da água quente.

– Íris, ó Deusa do Arco-íris – eu disse, – aceite minha oferenda.

Joguei uma moeda na névoa e ela desapareceu. Aí eu percebi que não sabia com quem me comunicar primeiro.

Minha mãe? Isso seria coisa para o ‘bom filho’ fazer, mas ela ainda não estaria preocupada comigo. Ela estava acostumada comigo desaparecendo por dias ou semanas de uma vez.

Meu pai? Tinha sido há muito tempo, quase dois anos, desde que eu realmente falei com ele. Mas você poderia mesmo mandar uma mensagem de Íris para um deus? Eu nunca tentei. Iria aborrecê-los, como uma chamada de vendas ou algo do tipo?

Eu hesitei. Então me decidi.

– Mostre-me Tyson – eu pedi. – Nas forjas dos Ciclopes.

A névoa brilhou e a imagem do meu meio-irmão apareceu. Ele estava rodeado de fogo, o que seria um problema se ele não fosse um ciclope. Ele estava inclinado sobre uma bigorna, martelando uma espada vermelha de calor. Faíscas voavam e chamas rodopiavam ao redor de seu corpo. Havia uma janela com moldura de mármore atrás dele, e ela dava direto para água azul escura – o fundo do oceano.

– Tyson! – gritei.

Ele não me escutou de primeira por causa das marteladas e do rugido das chamas.

– TYSON!

Ele se virou, e seu enorme olho se arregalou. Seu rosto se dobrou em um sorriso torto e amarelo.

– Percy!

Ele derrubou a lâmina da espada e correu até mim, tentando me abraçar. A visão ficou borrada e eu fui instintivamente para trás.

– Tyson, essa é uma mensagem de Íris. Eu não estou realmente aqui.

– Ah. – Ele voltou para o campo visual, parecendo envergonhado. – Ah, eu sabia disso. Sim.

– Como você está? – perguntei. – Como está o trabalho?

O olho dele se acendeu.

– Amo o trabalho! Olhe! – Ele pegou a lâmina quente com as mãos desprotegidas. – Eu fiz isso!

– Isso é bem legal.

– Escrevi meu nome nela. Bem ali.

– Incrível. Escute, você fala muito com o papai?

O sorriso de Tyson sumiu.

– Não muito. Papai está ocupado. Ele está preocupado com a guerra.

– O que você quer dizer?

Tyson suspirou. Ele botou a lâmina para fora da janela, onde produziu uma nuvem de bolhas ferventes. Quando Tyson trouxe de volta, o metal estava frio.

– Velhos espíritos do mar criando problemas. Aigaios. Oceanus. Esses caras.

Eu meio que sabia do que ele estava falando. Ele queria dizer os imortais que controlavam os oceanos na época dos Titãs. Antes dos Olimpianos ascenderem. O fato de eles estarem de volta agora, com o Lorde Titã Cronos e seus aliados ganhando força, não era bom.

– Tem algo que eu possa fazer? – perguntei.

Tyson balançou sua cabeça tristemente.

– Nós estamos armando as sereias. Elas precisam de mais mil espadas para amanhã. – Ele olhou para sua lâmina e suspirou. – Velhos espíritos estão protegendo o barco malvado.

– O Princesa Andrômeda? – eu disse. – O barco de Luke?

– Sim. Eles tornam o barco difícil de encontrar. Protegem contra as tempestades do papai. Se não fosse isso ele acabaria com o barco.

– Acabar com o barco seria bom.

Tyson empertigou-se, como se tivesse tido outra ideia.

– Annabeth! Ela está aí?

– Ah, bem... – Meu coração parecia uma bola de boliche. Tyson pensava que Annabeth era a coisa mais legal desde a manteiga de amendoim (e ele sinceramente amava manteiga de amendoim). Eu não tinha coragem de dizer a ele que ela estava desaparecida. Ele começaria a chorar tanto que poderia apagar suas fogueiras.

– Bem, não... ela não está aqui no momento.

– Diga olá para ela! – ele sorriu. – Olá para Annabeth!

– Ok. – Eu lutei contra um nó na minha garganta. – Farei isso.

– E, Percy, não se preocupe com o barco malvado. Ele está indo embora.

– Como assim?

– Canal do Panamá! Muito longe daqui.

Eu franzi a testa. Porque Luke levaria seu barco de cruzeiro infestado de demônios por todo esse caminho até lá? A última vez que nós o vimos, ele estava navegando pela Costa Leste, recrutando meio-sangues e treinando seu exército monstruoso.

– Tudo bem – falei, sem me sentir seguro. – Isso é... bom. Eu acho.

Nas forjas, uma voz profunda berrou algo que eu não consegui entender. Tyson recuou.

– Tenho que voltar ao trabalho! O chefe vai ficar bravo. Boa sorte, irmão!

– Ok, diga ao pai...

Mas antes que eu pudesse terminar, a visão brilhou e desapareceu. Eu estava sozinho de novo no meu chalé, sentindo-me ainda mais solitário do que antes.

Eu estava bastante infeliz no jantar daquela noite. Quero dizer, a comida estava excelente como sempre. Você não pode ficar mal com churrasco, pizza e cálices de refrigerante que nunca esvaziam. As tochas e os braseiros mantinham aquecido o pavilhão ao ar livre, mas todos nós tínhamos de sentar com nossos companheiros de chalé, o que significava que eu estava só na mesa de Poseidon.

Thalia sentou sozinha na mesa de Zeus, mas nós não podíamos sentar juntos. Regras do acampamento. Pelo menos os chalés de Hefesto, Ares e Hermes tinham algumas pessoas cada um. Nico sentou com os irmãos Stoll, desde que os novatos sempre são mantidos no chalé de Hermes se seu parente Olimpiano é desconhecido. Os irmãos Stoll estavam tentando convencer Nico que pôquer era um jogo bem melhor que Mitomagia. Eu esperava que Nico não tivesse nenhum dinheiro a perder.

A única mesa que parecia estar realmente tendo um bom momento era a de Ártemis. As Caçadoras bebiam e comiam e riam como uma grande e feliz família. Zoë estava sentada na cabeceira como se fosse a mamãe. Ela não ria tanto quanto as outras, mas sorria de vez em quando. Sua tiara prateada de tenente brilhava nas tranças escuras de seu cabelo. Pensei que sua aparência ficava bem melhor quando ela sorria. Bianca di Angelo parecia estar num grande momento. Ela estava tentando aprender queda de braço com a moça que tinha armado uma briga com a criança de Ares na quadra de basquete. A mulher maior estava ganhando dela toda hora, mas Bianca não parecia se importar.

Quando terminamos de comer, Quíron fez o tradicional brinde aos deuses e formalmente deu as boas vindas às Caçadoras de Ártemis. Os aplausos foram meio fracos. Então ele anunciou a ‘boa nova’, o jogo da captura da bandeira na noite de amanhã, o que teve uma recepção muito melhor.

Depois disso, nós todos seguimos de volta para nossos chalés para um apagar de luzes cedo, de inverno. Eu estava exausto, o que significou que eu dormi facilmente. Esta foi a parte boa. A parte ruim foi que eu tive um pesadelo, e até para os meus padrões aquilo foi demais.

Annabeth estava numa encosta escura, coberta de névoa. Quase parecia com o Mundo Inferior, porque eu imediatamente me senti claustrofóbico e não conseguia ver o céu acima – somente uma fechada, pesada escuridão, como se eu estivesse numa caverna.

Annabeth se esforçava para subir a colina. Velhas colunas gregas de mármore preto estavam quebradas e espalhadas ao redor, como se alguma coisa tivesse explodido uma grande construção em ruínas.

– Espinheiro! – Annabeth gritou. – Onde você está? Porque você me trouxe aqui? – ela subiu em um pedaço de parede quebrada e alcançou o pico da colina.

Ela se espantou. Ali estava Luke. E ele estava sentindo dor. Ele estava caído no chão de pedra, tentando se levantar. A escuridão parecia ser mais espessa em volta dele, névoa rodopiando avidamente. Suas roupas estavam esfarrapadas e seu rosto estava arranhado e úmido de suor.

– Annabeth! – ele chamou. – Ajude-me! Por favor!

Ela correu adiante.

Eu tentei gritar: Ele é um traidor! Não acredite nele!

Mas minha voz não funcionava no sonho.

Annabeth tinha lágrimas em seus olhos. Ela se aproximou como se quisesse tocar o rosto de Luke, mas hesitou no último segundo.

– O que aconteceu? – ela perguntou.

– Eles me deixaram aqui – gemeu Luke. – Por favor. Está me matando.

Eu não conseguia ver o que havia de errado com ele. Ele parecia estar lutando contra alguma maldição invisível, como se a névoa estivesse espremendo-o até a morte.

– Por que eu deveria confiar em você? – perguntou Annabeth. Sua voz estava cheia de mágoa.

– Não deveria – disse Luke. – Eu fui terrível com você. Mas se você não me ajudar, eu vou morrer.

Deixe ele morrer!, eu queria gritar. Luke tentou nos matar a sangue frio vezes demais. Ele não merecia nada de Annabeth.

Então a escuridão em cima de Luke começou a ruir, como o teto de uma caverna em um terremoto. Grandes blocos de pedra negra começaram a cair. Annabeth entrou rapidamente assim que uma fresta se abriu, e todo o telhado desabou. Ela segurou aquilo de alguma forma – toneladas de pedra. Ela impediu que desabasse em cima dela e de Luke apenas com sua própria força. Era impossível. Ela não deveria ser capaz de fazer aquilo.

Luke rolou livre, respirando pesadamente.

– Obrigado – ele completou.

– Ajude-me a segurar isto – gemeu Annabeth.

Luke prendeu a respiração. Seu rosto estava coberto de sujeira e suor. Ele se levantou desequilibrado.

– Eu sabia que podia contar com você. – Ele começou a ir embora enquanto a escuridão instável ameaçava destruir Annabeth.

– AJUDE-ME! – ela protestou.

– Ah, não se preocupe – disse Luke. – Sua ajuda está a caminho. É tudo parte do plano. Enquanto isso tente não morrer.

O teto de escuridão começou a desabar novamente, empurrando Annabeth contra o solo. Eu sentei repentinamente ereto na cama, agarrando as cobertas. Não havia nenhum som no meu chalé exceto pelo gorgolejar da fonte de água salgada. O relógio no meu criado mudo apontava que era pouco mais que meia-noite. Somente um sonho, mas eu estava certo de duas coisas: Annabeth estava em terrível perigo. E Luke era o responsável.

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