terça-feira, 24 de setembro de 2013

Em chamas - capitulo 7




Uma bolsa de couro cheia de comida e uma garrafa de chá quente. Um par de luvas forradas com pele que Cinna deixou para trás. Três galhos quebrados da árvore nua, caída na neve, apontam na direção que eu vou viajar. Isto é o que eu deixo para Gale no nosso ponto de encontro habitual no primeiro domingo após a Festa da Colheita.Eu continuei em meio ao bosque frio enevoado, abrindo um caminho que será desconhecido para Gale, mas simples para meus pés encontrarem. Ele leva para o lago. Eu já não acredito que o nosso ponto de encontro regular ofereça privacidade, e eu preciso disso e muito mais para extravasar minha coragem para Gale hoje. Mas será que ele vem mesmo? Se ele não vier, não terei escolha senão arriscar ir à sua casa na calada da noite. Existem coisas que ele tem que saber... coisas que eu preciso dele para me ajudar a descobrir...Logo que os resultados do que eu estava vendo na televisão do Prefeito Undersee chegaram a mim, eu fui para a porta e comecei a descer o corredor. Na hora certa, também, porque o Prefeito subiu os degraus momentos depois. Dei-lhe um aceno.— Procurando Madge? — ele disse em um tom amigável.
— Sim. Quero mostrar meu vestido a ela.
— Bem, você sabe onde encontrá-la.
Naquele momento, outra rodada de bipes veio de seu escritório. Seu rosto ficou sério.— Desculpe-me — ele disse.
Ele entrou em seu escritório e fechou a porta com força.Esperei na sala até que eu tivesse me acalmado. Lembrando a mim mesma que eu devia agir naturalmente. Então achei Madge em seu quarto, sentada em sua penteadeira, escovando os cabelos loiros ondulados diante de um espelho. Ela estava com o mesmo vestido branco lindo que havia usado no Dia da Colheita. Ela viu meu reflexo por trás dela e sorriu.— Olhe para você. Como se tivesse vindo imediatamente das ruas da Capital.
Eu me aproximei. Meus dedos tocaram o mockingjay.— Até meu broche agora. Mockingjays são a última moda agora, graças a você. Tem certeza que não o quer de volta?
— Não seja boba, foi um presente — Madge disse.
Ela arrumou os cabelos para trás com uma fita dourada de festa.— De onde você tirou isso, afinal? — pergunto.
— Foi da minha tia, mas acho que está na família há muito tempo.
— É uma escolha engraçada, um mockingjay. Quero dizer, por causa do que aconteceu na rebelião. Com os jabberjays se tornando uma arma contra a Capital e tudo mais.
Os jabberjays eram mutações, pássaros machos geneticamente melhorados criados pela Capital como armas para espionar os rebeldes nos distritos. Eles podiam lembrar e repetir longos trechos da conversa humana, então eram enviados para áreas rebeldes para captar nossas palavras e repeti-las para a Capital.Os rebeldes os capturaram e os voltaram contra a Capital, enviando-os para casa carregados de mentiras. Quando isso foi descoberto, os jabberjays foram deixados na floresta para morrer. Em poucos anos, tornaram-se extintos, mas não antes de terem acasalado com mockingbirds fêmeas, criando uma espécie inteiramente nova.— Mas mockingjays nunca foram uma arma — disse Madge. — Eles são apenas pássaros canoros. Certo?
— Sim, eu acho que sim.
Mas isso não é verdade. Um mockingbird é só um pássaro canoro. Um mockingjay é uma criatura que a Capital nunca teve a intenção de que existisse. Eles não contavam com os jabberjays altamente controlados terem seus cérebros adaptados à vida selvagem, passarem seu código genético, desenvolver-se em uma nova forma. Eles não tinham previsto sua vontade de viver.Agora, quando ando pela neve, vejo os mockingjays pulando nos galhos enquanto assimilam melodias de outros pássaros, reproduzem-nas, e em seguida transformam-nas em algo novo. Como sempre, eles me lembram Rue. Penso no sonho que tive na última noite no trem, onde eu a seguia em forma de mockingjay. Eu gostaria de ter ficado dormindo um pouco mais e descobrir onde ela estava tentando me levar.É uma boa caminhada até o lago, não há dúvida. Se ele decidir me seguir de qualquer maneira, Gale vai ficar bravo por esse uso excessivo de energia que poderia ser mais bem gasto na caça.Ele estava visivelmente ausente do jantar na casa do prefeito, embora o resto de sua família tivesse vindo. Hazelle disse que ele estava doente em casa, o que era uma mentira óbvia. Eu não consegui encontrá-lo no Festival da Colheita, também. Vick me disse que ele estava caçando. O que provavelmente era verdade.Depois de algumas horas, cheguei a uma casa velha perto da beira do lago. Talvez “casa” seja uma palavra excessivamente grande para ela. É apenas um quarto com cerca de doze metros quadrados. Meu pai achava que há um tempo, havia um monte de prédios – você ainda pode ver algumas das fundações – e as pessoas vinham para elas para brincar e pescar no lago.Esta casa superou permaneceu de pé porque é feita de concreto. Piso, telhado, forro. Apenas uma das quatro janelas de vidro permanece, instável e amarelada pelo tempo. Não há encanamento e nem eletricidade, mas a lareira continua funcionando e há uma pilha de lenha no canto que meu pai e eu recolhemos anos atrás.Comecei um pequeno fogo, contando com a névoa para encobrir qualquer fumaça denunciadora. Enquanto o fogo aumenta, varro a neve que se acumulou sob as janelas vazias, usando uma vassoura de galho que meu pai fez quando eu tinha uns oito anos e brincava de casinha aqui. Então me sento na pequena lareira de concreto, descongelando no fogo e esperando por Gale.Foi um tempo surpreendentemente curto antes de ele aparecer. Um arco pendurado em seu ombro, um peru selvagem morto, que ele deve ter encontrado ao longo do caminho, pendurado em seu cinto. Ele para na porta, como se considerasse se devia ou não entrar. Segura a bolsa de couro de alimentos fechada, o cantil, as luvas de Cinna. Presentes que ele não vai aceitar por causa da sua raiva de mim. Eu sei exatamente como ele se sente. Eu não fiz a mesma coisa para minha mãe?Eu olho em seus olhos. Seu temperamento não consegue mascarar completamente a dor, o sentimento de traição que ele sente pelo meu noivado com Peeta. Está será minha última chance, esse encontro de hoje, para não perder Gale para sempre. Eu poderia levar horas tentando explicar, e mesmo assim ser rejeitada por ele. Em vez disso eu vou direto ao coração da minha defesa.— Presidente Snow ameaçou matá-lo pessoalmente — eu disse.
Gale levanta as sobrancelhas ligeiramente, mas não há nenhuma demonstração de medo ou surpresa.— Mais alguém?
— Bem, na verdade ele não chegou a me dar uma cópia da lista. Mas é um bom palpite que inclui ambas nossas famílias — digo.
É o suficiente para trazê-lo para o fogo. Ele se agacha diante da lareira e se aquece.— A menos que?
— A menos que nada, agora.
Obviamente isso exige mais de uma explicação, mas não tenho ideia por onde começar, então só fico lá sentada olhando melancolicamente para o fogo.Após cerca de um minuto, Gale rompe o silêncio.— Bem, obrigado pelo alerta.
Viro-me para ele, pronta para estourar, mas percebo o brilho em seus olhos. Eu me odeio por sorrir. Este não é um momento engraçado, mas acho que é demais para descontar em alguém. Vamos todos ser destruídos de qualquer forma.— Eu tenho um plano, você sabe.
— Sim, eu aposto que ele é encantador — ele rebate. Ele joga as luvas em meu colo. —Aqui. Eu não quero as luvas velhas do seu noivo.
— Ele não é meu noivo. Isso é apenas parte da atuação. E estas não são as luvas dele. Elas eram de Cinna.
— Devolva-as, então — diz ele. Ele puxa as luvas, movimenta seus dedos, e acena com aprovação. — Pelo menos vou morrer com conforto.
— Isso é otimista. Claro, você não sabe o que aconteceu.
— Então me conta — diz ele.
Decido começar com a noite em que Peeta e eu fomos coroados vencedores do Jogos Vorazes, e Haymitch me prevenindo sobre a fúria da Capital. Conto-lhe sobre a inquietação que me impulsionou mesmo quando eu estava de volta em casa, a visita do Presidente Snow, os assassinatos no Distrito 11, a tensão na multidão, o último esforço do noivado, o sinal do presidente que não tinha sido o suficiente, minha certeza de que vou ter que pagar.Gale não interrompe. Enquanto eu falo, ele enfia a luva no bolso e se ocupa em transformar o alimento na bolsa de couro em uma refeição para nós. Torrando pão e queijo, tirando o miolo de maçãs, colocando castanhas no fogo para assar. Eu observo suas mãos, seus belos dedos capazes. Com cicatrizes, como os meus eram antes da Capital apagar todas as marcas da minha pele, mas fortes e ágeis. Mãos que têm o poder de explorar carvão, mas a precisão para preparar um laço delicado. Mãos que eu confio.Faço uma pausa para tomar um gole de chá da garrafa térmica antes de lhe contar sobre a minha volta para casa.— Bem, você realmente fez uma confusão de coisas — diz ele.— Eu nem tenho feito.
— Já ouvi o suficiente por enquanto. Vamos avançar para esse seu plano.
Eu respiro fundo.— Nós fugimos.
— O quê? — ele pergunta.
Isso realmente o pegou desprevenido.— Fugimos para a floresta e corremos — respondo.
Seu rosto é impossível de ler. Será que ele vai rir de mim, julgar isso como loucura? Eu levanto agitada, me preparando para uma discussão.— Você mesmo disse que pensou que poderíamos fazer isso! Naquela manhã da colheita. Você disse...
Ele dá um passo e eu me sinto levantando do chão. O quarto gira, e eu tenho que fechar meus braços em volta do pescoço de Gale para me firmar. Ele está rindo, feliz.— Ei! — protesto, mas estou rindo também.
Gale me põe no chão, mas sem tirar seus braços de mim.— Ok, vamos fugir — diz ele.
— Sério? Você não acha que eu sou louca? Você vai comigo?
Um pouco do peso esmagador começa a aliviar enquanto transfere para os ombros de Gale.— Eu acho que você é louca e eu ainda vou com você — ele responde.
Ele pretende fazer isso. Não apenas pretende, mas alegra-se com isso.— Nós podemos fazê-lo. Eu sei que podemos. Vamos sair daqui e nunca mais voltar!
— Você tem certeza? — pergunto. — Porque isso vai ser difícil, com as crianças e tudo mais. Eu não quero entrar cinco quilômetros na floresta e ter você...
— Eu tenho certeza. Eu estou completamente, totalmente, cem por cento certo.
Ele inclina sua testa para baixo para descansar contra a minha e me puxa para mais perto. Sua pele, todo o seu ser, irradia calor por estar tão perto do fogo, e eu fecho meus olhos, absorvendo o seu calor.Respiro o cheiro de couro umedecido com neve, o fumo e as maçãs, o cheiro de todos os dias de inverno que nós compartilhamos antes dos Jogos. Eu não tento me afastar. Por que eu deveria, afinal? Sua voz sai em um sussurro.— Eu te amo.
É por isso.Eu nunca percebo estas coisas vindo. Elas acontecem muito rápido. Num segundo você está propondo um plano de fuga e no próximo... espera-se que você lide com algo assim. Eu dou a que deve ser a pior resposta possível.— Eu sei.
Soa terrível. Como eu suponho, ele não pode deixar de me amar, mesmo que eu não sinta nada em troca. Gale começa a se afastar, mas eu o agarro.— Eu sei! E você... você sabe o que é para mim.
Não é o suficiente. Ele interrompe meu aperto.— Gale, eu não consigo pensar em ninguém desse jeito agora. Tudo o que posso pensar a cada dia, cada minuto de vigília desde que eles chamaram o nome de Prim na colheita, é como eu estou com medo. E não parece haver espaço para mais nada. Se pudéssemos chegar a algum lugar seguro, talvez eu pudesse ser diferente. Eu não sei.
Posso vê-lo engolir a sua decepção.— Então, nós vamos. Nós vamos descobrir. — Ele se volta para o fogo, onde as castanhas estão começando a queimar. Ele as vira para a lareira. — Minha mãe vai levar algum tempo para ser convencida.
Eu acho que ele ainda vai, de qualquer maneira. Mas a felicidade fugiu, deixando uma tensão por demais familiar em seu lugar.— A minha também. Eu vou ter que fazê-la ver a razão. Levá-la para uma longa caminhada. Ter certeza que ela entenda que nós não vamos sobreviver à alternativa.
— Ela vai entender. Eu vi um monte dos Jogos com ela e Prim. Ela não vai dizer não para você — Gale fala.
— Espero que não. — A temperatura na casa parece ter caído vinte graus em questão de segundos. — Haymitch será o verdadeiro desafio.
— Haymitch? — Gale abandona as castanhas. — Você vai pedir a ele para vir conosco?
— Eu preciso, Gale. Eu não posso deixar ele e Peeta porque eles tinham... — sua carranca me corta. — O quê?
— Sinto muito. Eu não percebi o quanto a nossa festa era grande — ele me repreende.
— Eles os torturariam até a morte, tentando descobrir onde eu estou — digo.
— Que tal a família de Peeta? Eles nunca virão. Na verdade, eles provavelmente não podem esperar para informar sobre nós. O que tenho certeza que ele é inteligente o suficiente para perceber. E se ele decidir ficar?
Eu tento soar indiferente, mas a minha voz hesita.— Então ele fica.
— Você o deixaria para trás? — Gale pergunta.
— Para salvar Prim e minha mãe, sim — respondo. — Quero dizer, não! Vou convencê-lo a vir.
— E eu, você me deixaria? — A expressão de Gale é dura como pedra agora. — Só se, por exemplo, eu não puder convencer minha mãe a arrastar três filhos pequenos para a floresta no inverno.
— Hazelle não vai recusar. Vai ver sentido.
— Suponhamos que ela não veja, Katniss. E depois? — ele questiona.
— Então você terá que forçá-la, Gale. Você acha que eu estou inventando essas coisas?
Minha voz está aumentando com raiva também.— Não. Eu não sei. Talvez o presidente esteja apenas manipulando você. Quero dizer, ele está jogando com o seu casamento. Você viu como a multidão da Capital reagiu. Eu não acho que ele pode se permitir matá-la. Ou Peeta. Como ele vai sair dessa?
— Bem, com uma revolta no Distrito Oito, duvido que ele esteja gastando muito tempo escolhendo meu bolo de casamento! — grito.
No instante em que as palavras saem da minha boca eu quero recuperá-las. Seu efeito sobre Gale é imediato – o rubor em seu rosto, o brilho de seus olhos cinzentos.— Há uma revolta no Oito? — ele diz em voz baixa.
Eu tento recuar. Para acalmar-lhe, como eu tentei acalmar os distritos.— Eu não sei se é realmente uma revolta. Há inquietação. Pessoas nas ruas...
Gale agarra meus ombros.— O que você viu?
— Nada! Em pessoa. Eu só ouvi alguma coisa.
Como de costume, é muito pouco, muito tarde. Eu desisto e digo a ele.— Eu vi algo na televisão do prefeito. Eu não devia. Havia uma multidão, e os incêndios, e os Pacificadores estavam abatendo pessoas, mas elas estavam se defendendo...
Eu mordo meu lábio e me esforço para continuar descrevendo a cena. Em vez disso eu digo em voz alta as palavras que estavam me corroendo por dentro.— E a culpa é minha, Gale. Por causa do que eu fiz na arena. Se eu tivesse simplesmente me matado com aqueles frutos, nada disso teria acontecido. Peeta poderia ter vindo para casa e viver, e todo mundo estaria seguro, também.
— Seguro para fazer o quê? — diz ele em um tom mais suave. — Passar fome? Trabalhar como escravos? Enviar seus filhos para a Colheita? Você não feriu pessoas, você lhes deu uma oportunidade. Elas só têm de ser corajosas o suficiente para tomá-la. Já há conversa nas minas. Pessoas que querem lutar. Você não vê? Está acontecendo! Está finalmente acontecendo! Se há uma rebelião no Distrito Oito, por que não aqui? Por que não em todos os lugares? Esta poderia ser ela, a coisa que temos...
— Os Pacificadores fora do Doze, eles não são como Darius, ou mesmo Cray! A vida das pessoas do distrito significa menos do que nada para eles! — digo.
— É por isso que temos de aderir à luta! — ele responde com dureza.
— Não! Temos que sair daqui antes que eles nos matem e um monte de outras pessoas também!
Estou gritando novamente, mas não consigo entender por que ele está fazendo isso, por que ele não vê o que é tão inegável?Gale me empurra bruscamente para longe dele.— Você vai, então. Eu nunca iria em um milhão de anos.
— Você estava feliz o suficiente para ir antes. Eu não vejo como uma revolta no Distrito Oito faça qualquer coisa senão tornar mais importante nós irmos embora. Você só está zangado por... — Não, eu não posso jogar Peeta em sua cara. — E a sua família?
— E as outras famílias, Katniss? As que não podem fugir? Você não vê? Não pode mais ser apenas sobre nos salvar. Não se a rebelião começou! — Gale balança a cabeça, não escondendo seu desgosto comigo. — Você pode fazer tanto. — Ele joga as luvas de Cinna aos meus pés. — Eu mudei de ideia. Não quero nada que eles fizeram na Capital.
E se foi.Eu olho para as luvas. Nada que eles fizeram na Capital? Isso foi dirigido a mim? Será que ele pensa que agora eu sou apenas mais um produto da Capital e, portanto, algo intocável? A injustiça de tudo isso me enche de raiva. Mas é misturado com o medo sobre o tipo de coisa louca que ele poderia fazer em seguida.Eu afundo junto ao fogo, desesperada por conforto, para planejar meu próximo passo. Me acalmo pensando que as rebeliões não acontecem em um dia. Gale não pode falar com os mineiros até amanhã. Se eu chegar a Hazelle antes disso, ela pode endireitá-lo. Mas eu não posso ir agora. Se ele estiver lá, vai me impedir de entrar. Talvez esta noite, depois que todo mundo estiver dormindo... Hazelle muitas vezes trabalha até tarde da noite, terminando de lavar roupa. Eu poderia ir em seguida, bater na janela, contar-lhe a situação para que ela impeça Gale de fazer qualquer coisa tola.Minha conversa com o Presidente Snow no escritório volta a minha mente.— Meus conselheiros estavam preocupados que você seria difícil, mas você não está pensando em ser difícil afinal, está?— Não.— Foi o que eu lhes disse. Eu disse que qualquer garota que vai tão longe para preservar sua vida não vai estar interessada em jogá-la fora com as duas mãos.Penso em quão duramente Hazelle tem trabalhado para manter a família viva. Com certeza ela vai estar do meu lado nesta questão. Ou será que não?Deve ser quase meio-dia agora e os dias são muito curtos. Não há interesse em estar na floresta depois de escurecer, se não precisar. Eu apago com os pés o resto do meu pequeno fogo, limpo os restos de comida e dobro as luvas de Cinna em meu cinto. Acho que vou guardá-las por um tempo. No caso de Gale se arrepender. Eu me lembro do olhar em seu rosto quando ele atirou-as no chão. Como ele foi repelido por elas, por mim...Eu caminho pela floresta e chego a minha antiga casa enquanto ainda há luz. Minha conversa com Gale foi um retrocesso óbvio, mas eu ainda estou determinada a continuar com o meu plano para escapar do Distrito 12. Decido encontrar Peeta em seguida. De uma forma estranha, desde que ele viu algumas das coisas que eu vi durante a turnê, ele pode ser mais fácil de convencer do que Gale. Eu corro para ele enquanto ele está deixando a Vila dos Vitoriosos.— Estava caçando? — pergunta ele.
Pode-se ver que ele não acha que é uma boa ideia.— Na verdade não. Indo para a cidade? — pergunto.
— Sim. Eu tenho que jantar com a minha família.
— Bem, pelo menos posso acompanhá-lo.
A estrada da Vila dos Vitoriosos para a praça tinha pouco uso. É um lugar seguro o suficiente para falar. Mas não consigo obter as palavras. Propor isso para Gale foi um desastre. Eu mordo meus lábios rachados. A praça se aproxima a cada passo. Posso não ter uma oportunidade de novo em breve. Eu respiro fundo e deixo as palavras irromperem.— Peeta, se eu lhe pedisse para fugir do Distrito comigo, você iria?
Peeta segura o meu braço, fazendo-me parar. Ele não precisa ver o meu rosto para ver se eu estou falando sério.— Depende do por que você está perguntando.
— O Presidente Snow não foi convencido por mim. Há uma revolta no Distrito Oito. Nós temos que ir embora — digo.
— Por “nós” você quer dizer apenas eu e você? Não. Quem mais poderia ir? — Ele pergunta.
— Minha família. A sua, se eles quiserem vir. Haymitch, talvez.
— E Gale? — Ele pergunta.
— Eu não sei. Ele talvez tenha outros planos.
Peeta sacode a cabeça e me dá um sorriso triste.— Aposto que ele tem. Claro, Katniss, eu vou.
Eu sinto uma pontada de esperança.— Você vai?
— Sim. Mas não acredito nem por um minuto que você vai — ele diz.
Eu jogo meu braço para longe.— Então você não me conhece. Esteja pronto. Pode ser a qualquer momento.
Eu saio andando e ele segue um ou dois passos trás.— Katniss — Peeta chama.
Eu não diminuo a velocidade. Se ele acha que é uma má ideia, eu não quero saber, porque é a única que eu tenho.— Katniss, espere.
Eu chuto um pedaço de neve suja para fora do caminho e o deixo me alcançar. O pó de carvão faz tudo parecer especialmente feio.— Eu realmente vou, se você quiser que eu vá. Só acho que é melhor conversar sobre isso com Haymitch. Certificar-nos de que não estaremos tornando as coisas piores para todos. — Ele levanta a cabeça. — O que é isso?
Levanto o meu queixo. Eu estava tão consumida com minhas próprias preocupações, que não tinha notado o barulho estranho vindo da praça. Um assobio, o som de um impacto, o consumo de ar de uma multidão.— Vamos lá — diz Peeta, o rosto subitamente rígido.
Eu não sei por quê. Eu não posso identificar o som, sequer imaginar a situação. Mas isso significa algo de ruim para ele.Quando chegamos à praça, fica claro que algo está acontecendo, mas a multidão é muito densa para ver. Peeta pisa em cima de uma caixa contra a parede da confeitaria e oferece-me uma mão, enquanto ele examina a praça. Estou a meio caminho quando de repente ele bloqueia o meu caminho.— Desça. Saia daqui!
Ele está sussurrando, mas sua voz é dura com a insistência.— O quê? — pergunto, tentando forçar o meu caminho de volta para cima.
— Vá para casa, Katniss! Eu estarei lá em um minuto, eu juro! — diz ele.
Seja o que for, é terrível. Eu empurro para longe sua mão e começo a forçar o meu caminho através da multidão. As pessoas me veem, reconhecem meu rosto, e depois olham em pânico. Mãos me empurram de volta. Vozes chiam.— Sai daqui, menina.
— Só vai tornar pior.
— O que você quer fazer? Matá-lo?
Mas neste momento, meu coração está batendo tão rápido e feroz que eu mal os ouço. Eu só sei que o que espera no meio da praça é importante pra mim. Quando eu finalmente avanço para o espaço vazio, vejo que estou certa. E Peeta estava certo. E essas vozes estavam certas, também.Os pulsos de Gale estão presos a um poste de madeira. O peru selvagem que ele caçou mais cedo está pendurado acima dele, a unha forçando através de seu pescoço. Sua jaqueta foi deixada de lado no chão, sua camisa rasgada. Ele está inconsciente de joelhos, preso apenas pelas cordas em seus pulsos. O que costumava ser suas costas é um pedaço de carne esfolada e sangrenta.De pé atrás dele está um homem que eu nunca vi, mas reconheço seu uniforme. É o designado para nosso Pacificador Chefe. Esse não é o velho Cray, porém. Este é um homem alto, musculoso, com vincos afiados em suas calças.As peças da imagem não se juntam completamente até eu ver seu braço levantar o chicote.

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