terça-feira, 24 de setembro de 2013

Em chamas - capitulo 9




Alguém balança meu ombro e eu me sento. Eu caí no sono com meu rosto na mesa. O pano branco deixou dobras na minha bochecha boa. A outra, a que levou a chicotada de Thread, pulsa dolorosamente. Gale está morto para o mundo, mas seus dedos estão presos aos meus. Eu sinto o cheiro de pão quente e viro meu pescoço rígido para encontrar Peeta me olhando com uma expressão tão triste. Percebo que ele esteve nos observado há um tempo.— Vá para a cama, Katniss. Vou cuidar dele agora.
— Peeta. Sobre o que eu disse ontem sobre fugir... — começo.
— Eu sei. Não há nada para explicar.
Vejo os pães no balcão sob a luz pálida da manhã cheia de neve. As sombras azuis debaixo de seus olhos. Me pergunto se ele dormiu um pouco. Não pode ter sido muito. Penso nele concordando em ir comigo ontem, em ele ficando do meu lado para proteger Gale, em sua disposição de me dar tudo, quando eu dou tão pouco a ele em retorno. Não importa o que eu faça, estou machucando alguém.— Peeta...
— Só vá para cama, ok?
Eu subo as escadas, me enrolo nos cobertores e caio no sono de uma vez. Em algum momento, Clove, a garota do Distrito 2, entrou nos meus sonhos. Ela me segue, me joga no chão, e puxa uma faca para cortar meu rosto. Ela faz um corte profundo na minha bochecha, abrindo um grande talho. Então, Clove começa a se transformar, seu rosto se alongando até que um focinho escuro e peludo aparece de sua pele, suas unhas crescendo até virarem garras, mas seus olhos permanecem inalterados. Ela se torna sua própria mutação, a criatura parecida a um lobo da Capital, que nos aterrorizou na última noite na arena. Jogando sua cabeça para trás, ela solta um uivo longo e lúgubre que é ouvido pelos outras mutações próximas. Clove começa a lamber o sangue que escorre da minha ferida, cada lambida causando uma onda de dor pelo meu rosto.Eu dou um grito estrangulado e acordo suando e tremendo de supetão. Tocando minha bochecha machucada, me lembro que não foi Clove, mas Thread que me deu essa ferida.Queria que Peeta estivesse aqui para me abraçar, até que me lembro de que eu não deveria querer mais isso. Eu escolhi Gale e a rebelião, e um futuro com Peeta é o plano da Capital, não meu.O inchaço ao redor do meu olho já diminuiu e eu posso abri-lo um pouco. Eu afasto as cortinas e vejo que a tempestade de neve virou uma nevasca completa. Não há nada além da brancura e do vento uivante que soa muito parecido com as mutações.Eu dou boas-vindas à nevasca, com seu vento feroz e a neve profunda e acumulada. Isso pode ser suficiente para manter os lobos reais afastados, também conhecidos como Pacificadores, da minha porta. Alguns dias para pensar. Para fazer um plano. Com Gale, Peeta e Haymitch por perto. Essa nevasca é um presente.Antes que eu entre de cara nessa nova vida, entretanto, tomo algum tempo tentando entender o que isso vai significar. Menos de um dia atrás, eu estava preparada para entrar na floresta com meus amados em pleno inverno, com a possibilidade muito real de a Capital nos perseguir. Uma aventura perigosa, na melhor das hipóteses. Mas agora eu estava planejando fazer algo ainda mais arriscado. Brigar com a Capital assegura uma retaliação rápida. Eu devo aceitar que, a qualquer momento, posso ser presa. Haverá uma batida na porta, como na última noite, um grupo de Pacificadores vai levar-me para longe. Talvez me torturem. Mutilação. Uma bala na minha cabeça na praça central, se eu tiver sorte o bastante e tudo seja rápido.A Capital tem formas infinitas para matar pessoas. Imagino essas coisas e fico horrorizada, mas vamos encarar a verdade: eles estiveram me observando de perto, de qualquer maneira. Eu fui um tributo nos Jogos. Fui ameaçada pelo presidente. Tomei uma chicotada no rosto. Eu já sou um alvo.Agora vem a parte mais difícil. Eu tenho de encarar o fato de que minha família e meus amigos podem compartilhar o mesmo destino. Prim. Eu só preciso pensar em Prim e toda a minha determinação se desintegra. É meu trabalho protegê-la.Puxo um cobertor sobre minha cabeça, e minha respiração está tão rápida que eu começo a me sufocar. Eu não posso deixar a Capital machucar Prim.E então percebo. Eles já machucaram. Eles mataram o pai dela naquelas minas miseráveis. Quase a fizeram morrer de fome. Eles a escolheram como um tributo, então fizeram com que sua irmã tivesse de lutar contra a morte nos Jogos. Ela já se machucou muito mais do que eu quando tinha a idade dela. E mesmo isso fica pálido em comparação a vida de Rue.Eu afasto o cobertor e inalo o ar frio que entra através da vidraça.Prim... Rue... não são elas a razão pela qual eu tenho de lutar? Porque o que foi feito a elas é tão errado, tão além de justificativas, tão mau que não há escolha? Porque ninguém tem o direito de tratá-los da mesma forma com que nós somos tratados?Sim.Isso é algo a se lembrar quando o medo ameaça me engolir. O que eu tenho de fazer, o que quer que um de nós somos forçados a suportar, é para elas. É muito tarde para ajudar Rue, mas talvez não seja tarde demais para aqueles cinco rostinhos que olharam para mim na praça do Distrito 11. Não tarde demais para Rory, Vicky e Posy. Não tarde demais para Prim.Gale está certo. Se as pessoas tiverem coragem, essa pode ser uma oportunidade. Ele também está certo ao dizer que, dado que eu iniciei o movimento, eu poderia fazer muito mais.Embora eu não tenha ideia do que deve ser feito. Mas decidir não fugir é um primeiro passo crucial.Eu tomo um banho, e nessa manhã meu cérebro não está fazendo listas de suprimentos para a floresta, mas tentando imaginar como eles organizaram aquela revolta no Distrito 8. Tantos agindo claramente em desafio à Capital. Foi planejado, ou algo que simplesmente irrompeu após anos de ódio e ressentimento? Como nós podemos fazer o mesmo aqui? As pessoas do Distrito 12 iriam se reunir ou trancar suas portas?Ontem a praça se esvaziou tão rapidamente depois do açoitamento de Gale. Mas não foi assim porque todos eles se sentiam tão impotentes e não têm ideia do que fazer? Eles precisam de alguém que os direcione e os assegure de que isso é possível. E não acho que sou essa pessoa. Eu posso ter sido o catalisador da rebelião, mas um líder deve ser alguém com convicção, e eu mal me convenci. Alguém de firme coragem, e eu ainda estou me esforçando para encontrar a minha. Alguém com palavras claras e persuasivas, e eu facilmente tenho a língua presa.Palavras. Penso em palavras e penso em Peeta. Como as pessoas aceitam tudo que ele diz. Ele poderia mover uma multidão, aposto, se ele quisesse. Encontraria as coisas para dizer. Mas tenho certeza de que a ideia nunca cruzou sua mente.No andar debaixo, encontro minha mãe e Prim cuidado de um Gale subjugado. O remédio deve estar perdendo efeito, pela expressão em seu rosto. Eu me seguro para não brigar outra vez e tento manter minha voz calma.— Você não pode dar a ele outra dose?
— Eu vou, se for necessário. Achamos que temos de usar o casaco de neve primeiro —diz minha mãe.
Ela tem de remover suas bandagens. Você pode praticamente ver o calor irradiando de suas costas. Ela coloca um tecido limpo sobre sua carne irritada e acena para Prim.Prim se aproxima, mexendo o que parece ser uma grande tigela de neve. Mas está colorido por um verde claro e emana um cheiro limpo e doce. Casaco de neve. Ela cuidadosamente começa a espalhar a mistura sobre o tecido. Eu quase posso ouvir o chiado da pele atormentada de Gale encontrando a mistura de neve. Seus olhos se abrem totalmente, perplexos, e então ele solta um som de alívio.— É uma sorte termos neve — diz minha mãe.
Penso no que deve ser se recuperar de um açoitamento em pleno verão, com o calor abrasador e a água morna da torneira.— O que você faz nos meses quentes? — pergunto.
Um vinco aparece entre as sobrancelhas da minha mãe.— Tento afastar as moscas.
Meu estômago se revolta ao pensar nisso. Ela enche um lenço com a mistura e eu fico parada para ela ser aplicada na minha bochecha. Instantaneamente a dor diminui. É a frieza da neve, sim, mas o que quer que seja a mistura de sucos de ervas que minha mãe acrescentou também aumenta a dormência.— Ah. Que maravilha. Por que você não colocou isso nele na noite passada?
— Eu precisava que a ferida se fixasse primeiro.
Eu não sei o que isso significa exatamente, mas contanto que funcione, quem sou eu para questioná-la? Ela sabe o que está fazendo, minha mãe. Eu sinto uma pontada de remorso por ontem, as coisas terríveis que gritei para ela quando Peeta e Haymitch me arrastaram da cozinha.— Sinto muito. Por ter gritado com você ontem.
— Eu já ouvi coisas piores — ela diz. — Você tem visto como as pessoas são, quando alguém que eles amam está em perigo.
Alguém que eles amam. As palavras deixam minha língua paralisada como se tivesse com o casaco de neve. É claro, eu amo Gale. Mas que tipo de amor ela quer dizer? O que eu quero dizer quando digo que amo Gale? Não sei. Eu o beijei na noite passada, num momento em que minhas emoções estavam altas. Mas não sei se ele se lembra. Lembra? Espero que não. Se ele lembra, tudo vai ficar mais complicado e eu não posso pensar em beijos quando tenho uma rebelião para incitar.Eu balanço minha cabeça para clareá-la.— Onde está Peeta?
— Ele foi para casa quando ouvimos você se mexendo. Não queria deixar sua casa sozinha durante a tempestade — diz minha mãe.
— Ele conseguiu voltar bem? — pergunto.
Numa nevasca, você pode se perder em poucos metros e vagar até o esquecimento.— Por que você não liga para ele e verifica? — ela diz.
Eu vou ao escritório, um cômodo que sempre fugi desde o encontro com Presidente Snow, e disco o número de Peeta. Depois de alguns toques ele responde.— Hey, eu só queria ter certeza de que você chegou em casa — digo.
— Katniss, eu vivo a três casas da sua — ele responde.
— Eu sei, mas com o tempo e tudo.
— Bem, estou ótimo. Obrigado por se preocupar.
Há uma longa pausa.— Como está Gale?
— Bem. Minha mãe e Prim estão aplicando o casaco de neve agora.
— E seu rosto? — pergunta.
— Aplicaram um pouco em mim, também. Você viu Haymitch hoje?
— Dei uma checada nele. Completamente bêbado. Mas eu acendi sua lareira e deixei algum pão para ele.
— Eu queria conversar... com vocês.
Não ouso acrescentar mais, aqui no meu telefone, que claramente está grampeado.— Provavelmente tenho de esperar até que o tempo se acalme — ele fala. — Nada mais vai acontecer antes disso, de qualquer forma.
— Não, nada mais — concordo.
Leva dois dias para que a tempestade diminua, deixando-nos com um acúmulo de neve mais alto que minha cabeça. Outro dia antes que o caminho seja limpo da Vila dos Vencedores até a praça. Durante esse tempo eu ajudo a cuidar de Gale, aplico neve na minha bochecha, tento me lembrar sobre tudo o que posso sobre a revolta no Distrito 8, caso isso possa nos ajudar. O inchaço no meu rosto desaparece, deixando-me com uma ferida que coça e um olho roxo. Mas ainda assim, quando tenho a primeira chance, ligo para Peeta para ver se ele quer ir ao centro comigo.Vamos até Haymitch e o arrastamos conosco. Ele reclama, mas não tanto quando o usual. Todos nós sabemos que precisamos discutir sobre o que aconteceu e isso não pode ser em qualquer lugar tão perigoso quanto nossas casas na Vila dos Vencedores.Na verdade, esperamos até que a vila esteja bem atrás de nós para falar. Eu passo o tempo estudando os muros de neve de 3 metros empilhados nos dois lados do caminho estreito que foi limpo, perguntando-me se eles vão cair sobre nós.Finalmente, Haymitch quebra o silêncio.— Então, estamos indo para o maravilhoso desconhecido, não estamos? — ele me pergunta.
— Não — respondo. — Não mais.
— Trabalhou nas falhas daquele plano, não foi, querida? — ele pergunta. — Alguma ideia nova?
— Eu quero começar uma revolta.
Haymitch só ri. Não é nem uma risada maligna, o que é mais preocupante. Mostra que ele nem me leva a sério.— Bem, eu quero uma bebida. Diga-me como isso vai funcionar para você, entretanto— diz.
— Então qual é o seu plano? — eu retruco para ele.
— Meu plano é ter certeza de que tudo está perfeito para seu casamento — diz Haymitch. — Eu liguei e remarquei a sessão de fotos sem dar muitos detalhes.
— Você nem tem um telefone — digo.
— Effie o consertou. Você sabe que ela me perguntou se eu queria despachá-la? Eu disse a ela que quanto mais cedo, melhor.
— Haymitch — posso ouvir minha voz implorando.
— Katniss. — Ele imita meu tom. — Não vai funcionar.
Nós nos calamos quando um time de homens com pás de ferro passa por nós, caminhando para a Vila dos Vencedores. Talvez eles possam fazer algo sobre aqueles muros de 3 metros. E quando estamos fora do alcance de voz, a praça está próxima demais. Entramos nela e paramos simultaneamente.Nada mais vai acontecer durante a nevasca. Isso é o que Peeta tinha dito e eu tinha concordado. Mas nós não podíamos estar mais errados.
A praça foi transformada. Um grande estandarte com o brasão de Panem está pendurado no teto do Edifício da Justiça. Pacificadores, em uniformes branco-puro, marcham sobre os paralelepípedos limpos. Pelos telhados, mais deles estão de guarda com armas. O mais desalentador é uma linha de novas construções – um posto oficial de açoitamento, algumas barreiras de defesa, e uma forca – colocada no centro da praça.— Thread trabalha rápido — comenta Haymitch.
Algumas ruas distantes da praça, vejo uma chama queimar. Nenhum de nós precisa dizê-lo. Que só pode ser o Prego pegando fogo. Penso em Greasy Sae, Ripper, todos meus amigos que fazem sua vida dali.— Haymitch, você não acha que eles ainda estão... — não sou capaz de terminar a sentença.
— Nah, eles são mais espertos que isso. Você seria, também, se tivesse passado mais tempo por aqui — diz. — Bem, é melhor eu ver quanto de álcool o boticário pode distribuir.
Ele atravessa a praça e olho para Peeta.— Para que ele quer isso? — Então eu percebo a resposta. — Não podemos deixá-lo beber isso. Ele vai se matar, ou no mínimo ficar cego. Eu tenho um pouco de licor branco em casa.
— Eu também. Talvez isso o segure até Ripper encontrar um modo de voltar aos negócios — diz Peeta. — Eu preciso checar minha família.
— Eu tenho de ir ver Hazelle.
Estou preocupada agora. Eu achei que ela iria à nossa porta no momento em que a neve diminuísse. Mas não houve nenhum sinal dela.— Eu vou, também. Vou parar na padaria no caminho de casa — Peeta fala.
— Obrigada.
De repente estou com medo do que possa encontrar.As ruas estão quase desertas, o que não seria tão estranho a essa hora do dia se as pessoas estivessem nas minas, as crianças na escola. Mas elas não estão. Vejo rostos nos observando através das fendas das portas fechadas.Uma revolta, penso. Que idiota eu sou.
Há uma falha natural no plano que Gale e eu estávamos muito cegos para ver. Uma revoltar requer violar as leis, anular a autoridade. Nós fizemos isso toda nossa vida, ou nossas famílias fizeram. Caçar ilegalmente, negociar no mercado negro, fazer piada da Capital na floresta. Mas para a maioria das pessoas no Distrito 12, uma viagem para comprar algo no Prego pode ser muito arriscado. Eu esperava que eles se reunissem na praça com tijolos e tochas? Até a visão de Peeta e eu é suficiente para fazer as pessoas afastarem seus filhos da janela e fecharem as cortinas.Encontramos Hazelle em sua casa, cuidando de uma Posy muito doente. Reconheço as manchas de sarampo.— Eu não podia deixá-la — ela diz. — Eu sabia que Gale estaria nas melhores mãos possíveis.
— É claro. Ele está bem melhor. Minha mãe diz que ele vai voltar às minas em duas semanas.
— Talvez não vão ser abertas até lá, de qualquer forma — Hazelle responde. — Dizem que eles as fecharam até uma segunda ordem.
Ela lança um olhar nervoso para a tina de lavar roupa vazia.— Você fechou, também? — pergunto.
— Não oficialmente. Mas todos estão com medo de me usar agora.
— Talvez seja a neve — diz Peeta.
— Não, Rory deu uma volta rápida nessa manhã. Nada para lavar, aparentemente —ela diz.
Rory envolve seus braços em volta de Hazelle.— Ficaremos bem.
Eu pego um punhado de dinheiro do meu bolso e o coloco na mesa.— Minha mãe vai mandar algo para Posy.
Quando chegamos ao lado de fora, viro-me para Peeta.— Você volta. Eu quero ir ao Prego.
— Vou com você — ele diz.
— Não. Eu já te dei problemas demais.
— E fugir de um passeio no Prego... isso vai consertar alguma coisa para mim?
Ele sorri e pega minha mão. Juntos, andamos pelas ruas da Costura até que chegamos ao prédio em chamas. Eles nem se incomodaram de deixar Pacificadores perto dele. Sabem que ninguém vai tentar salvá-lo.O calor das chamas derrete a neve mais próxima e uma nuvem negra atravessa meus sapatos.— É tudo poeira de carvão, como nos velhos tempos — digo.
Está tudo rachando e crepitando. Terreno no assoalho. É incrível como o lugar não rachou antes.— Eu quero verificar Greasy Sae.
— Não hoje, Katniss. Não acho que seremos de ajuda para qualquer um que estava ali— diz ele.
Voltamos para a praça. Compro alguns bolos do pai de Peeta enquanto eles conversam um pouco sobre o tempo. Sem menções sobre as ferramentas de tortura a poucos metros da porta. A última coisa que percebo quando deixamos a praça é que eu nem reconheço mais os rostos dos Pacificadores.Conforme os dias passam, as coisas vão de mal a pior. As minas ficam fechadas por duas semanas, e durante esse tempo metade do Distrito 12 passa fome. O número de crianças assinando as tésseras sobe, mas elas frequentemente não recebem seus grãos. A escassez de comida começa, os salários são cortados, as horas estendidas, mineiros são mandados para lugares de trabalho extremamente perigosos. A aguardada comida prometida pelo Dia da Parcela chega estragada e contaminada por roedores. As instalações na praça sempre são usadas quando as pessoas são arrastadas para lá e punidas por ofensas há tanto tempo ignoradas que eles esqueceram que eram ilegais.Gale vai para casa sem nenhuma conversa sobre rebelião entre nós. Mas não posso evitar pensar que tudo que ele vê apenas vai aumentar sua vontade de lutar de volta. As durezas nas minas, os corpos torturados na praça, a fome nos rostos de sua família. Rory se inscreveu para tésseras, algo que Gale não pode nem falar sobre, mas ainda não é o bastante com a disponibilidade irregular e preços crescentes dos alimentos.A única luz no fim do túnel é que eu consigo que Haymitch empregue Hazelle como uma governanta, resultando em algum dinheiro extra para ela e um aumento no padrão de vida de Haymitch. É estranho ir a sua casa, encontrá-la limpa e fresca, comida quente no fogão.Ele dificilmente percebe, porque está lutando numa batalha completamente diferente. Peeta e eu tentamos racionar o licor branco que tínhamos, mas ele quase acabou, e a última vez que vi Ripper, ela estava no estoque.Eu me sinto como um pária quando caminho pelas ruas. Todos fogem de mim publicamente agora. Mas não há escassez no negócio em casa. Uma fonte constante de doentes e feridos é depositada na nossa mesa em frente da nossa mãe, que há muito tempo parou de fazer esses serviços. Seu estoque de remédios está tão baixo, porém, que em breve ela vai ter de tratar os pacientes com neve.A floresta, é claro, está proibida. Absolutamente. Sem perguntas. Até Gale não desafia isso agora. Mas numa manhã, eu desafio. E não é a casa cheia de doentes e moribundos, as costas sangrando, os rostos magros das crianças, as botas marchando, ou a miséria onipresente que me leva a atravessar a cerca. É a chegada de uma caixa dos vestidos de casamento numa noite com uma nota de Effie dizendo que o próprio Presidente Snow o aprovou.O casamento. Ele realmente está planejando fazer isso? O que, no seu cérebro deformado, isso vai atingir? É para benefício daqueles na Capital? Um casamento foi prometido, um casamento será dado. E então ele vai nos matar? Como uma lição para os distritos? Eu não sei. Isso não faz sentido. Eu me viro na cama até que não posso mais suportar. Eu tenho de sair daqui. Pelo menos por algumas horas.Minhas mãos vasculham meu armário até que eu encontro uma roupa de inverno que Cinna fez para mim para uso recreativo no Tour da Vitória. Botas a prova d’água, um casaco de neve que me cobre dos pés a cabeça, luvas térmicas. Eu amo minhas antigas roupas de caça, mas a caminhada que tenho em mente hoje é mais adequada para roupas de alta tecnologia.Desço as escadas nas pontas dos dedos, enchendo minha bolsa com comida, e saio da casa. Seguindo por ruas e becos, caminho até o ponto fraco da cerca próximo ao açougue do Robba. Visto que muitos trabalhadores passam por ali para chegar às minas, a neve está marcada por pegadas. As minhas não serão notadas. Com todas as suas instalações de segurança, Thread não prestou atenção à cerca, talvez sentindo que o tempo duro e os animais selvagens fossem suficientes para manter todos do lado de dentro. Mesmo assim, uma vez que estou debaixo das correntes, apago meus rastros até que as árvores os ocultem para mim.Está amanhecendo quando retomo meu arco e minhas flechas e começo a forçar caminho pela neve na floresta. Estou determinada, por alguma razão, a ir ao lago. Talvez para dizer adeus ao lugar, para meu pai e o tempo feliz que passamos ali, porque sei que provavelmente nunca voltarei. Talvez só assim eu possa respirar direito novamente. Parte de mim não se importa realmente se eles me pegarem, se eu posso vê-lo mais uma vez.A viagem leva o dobro do tempo usual. As roupas de Cinna estão todas quentes agora, e chego encharcada de suor debaixo do casaco de neve enquanto meu rosto está dormente pelo frio. A visão do sol no inverno sobre a neve está brincando com meus olhos, e estou tão exausta e ocupada com meus pensamentos perdidos que não percebo os sinais.O filete de fumaça de uma fogueira, as marcas de pegadas recentes, o cheiro de agulhas de pinheiro fumegantes. Estou literalmente a poucos metros da porta da casa de cimento quando paro de supetão. E não é por causa da fumaça ou das marcas ou do cheiro. É por causa do clique inconfundível de uma arma atrás de mim.Segunda natureza. Instinto. Eu me viro, puxando uma flecha, embora eu já saiba que as chances não estão ao meu favor. Eu vejo o uniforme branco dos Pacificadores, o queixo pontudo, as íris castanho-claros para onde minha flecha está apontada. Mas a arma está caindo no chão e uma mulher desarmada está estendendo algo para mim com sua mão enluvada.— Pare! — ela grita.
Eu hesito, incapaz de processar a mudança dos eventos. Talvez eles tenham ordens de me levar viva para que possam me torturar incriminando todas as pessoas que eu conheço. Sim, boa sorte nisso, penso. Meus dedos já vão liberar a flecha quando vejo o objeto na luva. É um pequeno círculo branco de pão. Mais como um biscoito, na verdade. Cinza e ensopado nas pontas. Mas uma imagem está claramente estampada no centro.

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