terça-feira, 15 de outubro de 2013

Capitulo I - Percy






AS SENHORAS COM CABELO DE SERPENTE estavam começando a irritar Percy.
Elas deviam ter morrido três dias atrás quando ele deixou cair sobre elas uma caixa de bolas de boliche no Napa Mercado Bargain. Deviam ter morrido dois dias atrás quando ele passou por cima delas com um carro de polícia em Martinez. Elas definitivamente deveriam ter morrido esta manhã quando ele cortou fora suas cabeças no Tilden Park. Não importa quantas vezes Percy as matou e assistiu-as se desmoronarem em pó, elas apenas se reformavam como grandes bolas más de poeira.
Ele não podia até ter a impressão de fugir delas.
Alcançou o topo do morro e prendeu a respiração. Havia quanto tempo desde a última vez em que ele as matou? Talvez duas horas. Elas nunca pareceram ficar mais tempo mortas que isso.
Nos últimos dias, ele quase não dormiu. Comeu tudo o que pôde furtar – gelatina de ursinhos máquinas de vender, pães velhos e até mesmo um burrito Jack in the Crack, que foi uma nova perda pessoal. Suas roupas estavam rasgadas, queimadas e salpicadas de poeira de monstro.
Ele só sobreviveu por tanto tempo porque as duas senhoras de cabelos de serpente – górgonas, como chamavam a si mesmas – pareciam não poder matá-lo também. Suas garras não cortavam sua pele. Quebravam os dentes sempre que tentaram mordê-lo. Mas Percy não poderia continuar por muito mais tempo. Logo entraria em colapso por exaustão e, em seguida, tinha certeza de que as Górgonas iriam encontrar um caminho para matá-lo, mesmo sendo tão difícil.
Para onde correr?
Ele examinou o seu entorno. Em diferentes circunstâncias, ele poderia ter gostado da vista. À sua esquerda, montes dourados levavam para o interior, com lagos, bosques e um pequeno número de rebanhos de vacas.
À sua direita, a região plana de Berkeley e Oakland ia para o oeste – um vasto bairro, com milhões de pessoas que provavelmente não gostariam que a sua manhã fosse interrompida por dois monstros e um semideus sujo.
Mais a oeste, a Baía de São Francisco brilhava sob uma névoa prateada. Passado isso, uma parede de névoa engolia mais de São Francisco, deixando à mostra apenas o topo dos arranha-céus e as torres da ponte Golden Gate.
Uma vaga tristeza pesava sobre o peito de Percy. Algo lhe dizia que ele esteve em São Francisco antes. A cidade tinha alguma ligação com Annabeth – a única pessoa que ele podia se lembrar de seu passado. Sua memória dela era frustrantemente turva. A loba tinha prometido que ele iria vê-la novamente e recuperar sua memória – se ele tivesse sucesso em sua jornada.
E se ele tentar atravessar a baía?
Era tentador. Ele podia sentir o poder do oceano no horizonte. A água sempre o reviveu. A água salgada era a melhor. Ele descobriu isso há dois dias quando estrangulou um monstro do mar no Estreito Carquinez. Se ele pudesse chegar à baía, poderia ser capaz de dar uma última cartada. Talvez pudesse até mesmo afogar as Górgonas. Mas o litoral estava a pelo menos dois quilômetros de distância. Ele teria que atravessar toda uma cidade.
Ele hesitou por outro motivo.
A loba Lupa havia lhe ensinado a aguçar seus sentidos – confiar nos instintos que o estavam guiando para o sul. Seu radar direcional estava formigando como louco. O fim de sua jornada estava próximo – quase diretamente debaixo dos seus pés. Mas como poderia ser isso? Não havia nada no topo da colina.
O vento mudou. Percy sentiu o cheiro azedo de réptil. A cem metros ladeira abaixo, algo balançou os galhos – madeiras estalando, mastigando as folhas, assobiando.
Górgonas.
Pela milionésima vez, Percy quis que seu olfato não fosse tão bom. Elas sempre disseram que podiam sentir o cheiro dele porque ele era um semideus – filho meio-sangue de algum deus romano antigo. Percy tentou rolar na lama, nadar através de riachos, até mesmo manter purificadores de ar junto ao bolso, assim ele teria aquele cheiro de carro novo; mas aparentemente o fedor de um semideus era difícil de mascarar.
Ele correu para o lado oeste do topo. Era demasiado íngreme para descer. A inclinação despencava vinte e quatro metros, direto para o telhado de um complexo de apartamentos construído ao lado da colina. Quatro metros e meio abaixo, uma rodovia surgia a partir da base do morro e terminava o seu caminho em direção a Berkeley.
Ótimo. Não há outro caminho para fora do morro. Ele conseguira se encurralar.
Ele olhou para o fluxo de veículos fluindo para oeste em direção à São Francisco e desejou que estivesse em um deles. Então percebeu que a estrada deveria atravessar o morro. Deveria haver um túnel... diretamente sob seus pés.
Seu radar interno enlouqueceu. Ele estava no lugar certo, mas a uma altura muito grande. Tinha que verificar esse túnel. Precisava de um caminho para a autoestrada, e rápido. Ele tirou fora sua mochila. Tinha conseguido pegar um monte de suprimentos no Napa Mercado Bargain: um GPS portátil, fita adesiva, superbonder, isqueiro, garrafa de água, barraca de acampar, um travesseiro confortável de panda (como o da TV) e um canivete suíço – praticamente todas as ferramentas que um semideus moderno poderia desejar. Mas não tinha nada que servisse como um paraquedas ou um trenó.
Aquilo o deixou com duas opções: pular vinte e quatro metros para sua morte ou ficar e lutar. Ambas as opções soavam muito ruins.
Ele amaldiçoou e puxou sua caneta do bolso.
A caneta não parecia grande coisa, apenas uma esferográfica comum barata, mas quando Percy a destampava, ela crescia em uma espada de bronze brilhante. A lâmina era perfeitamente equilibrada. O punho de couro encaixava na mão como se tivesse sido projetada para ele. Gravado ao longo da guarda estava uma antiga palavra grega que Percy de algum modo entendeu: Anaklusmos – Contracorrente.
Ele acordou com a espada na sua primeira noite na Casa do Lobo – dois meses atrás? Mais? Havia perdido a conta. Encontrou-se no pátio de uma mansão incendiada no meio do mato, vestindo shorts, uma camiseta laranja, um estranho colar de couro com várias contas de argila. Contracorrente estava em sua mão, mas Percy não tinha ideia de quem ele era ou como ele tinha chegado lá. Ele estava descalço, congelando e confuso. E então vieram os lobos...
Mesmo ao lado dele, uma voz familiar sacudiu-o de volta ao presente:
— Aí está você!
Percy tropeçou para longe da górgona, quase caindo para fora da borda da colina. O nome de uma era Beano.
Certo, o nome dela não era realmente Beano. Foi o mais perto que Percy pôde identificar, pois era disléxico, as palavras se torciam quando ele tentava ler. A primeira vez que tinha visto a górgona, posando como recepcionista no Mercado Bargain com um grande crachá verde que dizia: BEM-VINDOS! MEU NOME É STHENO, ele pensou que dizia Beano.
Ela ainda estava usando seu colete verde de empregados do Mercado Bargain sobre um vestido estampado de flores. Se você apenas olhasse para seu corpo, poderia pensar que ela era alguma velhinha atarracada – até que olhasse para baixo e percebesse que ela tinha pés de galinha. Ou se olhasse melhor e visse as presas de javali de bronze saindo dos cantos de sua boca. Seus olhos brilhavam vermelhos e em seu cabelo era um ninho de serpentes brilhantes e verdes se contorcendo.
A coisa mais horrível sobre ela? Ainda estava segurando a bandeja de prata grande de amostras grátis: Crispy Cheese ’n’ Wieners. A bandeja estava toda amassada de todas as vezes que Percy tinha matado-a, mas as pequenas amostras pareciam perfeitamente bem. Stheno apenas ficava carregando-a por toda a Califórnia, para que ela pudesse oferecer a Percy um lanche antes que o matasse. Percy não sabia por que ela continuava fazendo isso, mas se ele precisasse de uma armadura, ele iria tomar dela os Crispy Cheese ’n’ Wieners. Aquele material era indestrutível.
— Experimente um! — Stheno ofereceu.
Percy afastou-a para longe com sua espada.
— Onde está sua irmã?
— Oh, coloque essa espada para longe — Stheno censurou. — Você já sabe que mesmo Bronze Celestial não pode nos matar por muito tempo. Pegue um Cheese ’n’ Wiener! Eles estão à venda nesta semana e eu odeio matá-lo com o estômago vazio.
— Stheno! — A segunda górgona apareceu à direita de Percy tão rápido que ele não teve tempo para reagir. Felizmente ela estava muito ocupada olhando para a irmã dela, para dar-lhe muita atenção. — Eu lhe disse para pular sobre ele e matá-lo!
Stheno sorriu vacilante.
— Mas, Euryale... — Ela disse o nome como se rimasse com Muriel. — Não posso dar a amostra grátis pra ele primeiro?
— Não, sua imbecil! — Euryale voltou para Percy e arreganhou suas presas.
Com exceção de seu cabelo, que era um ninho de cobras corais em vez de víboras verdes, ela parecia exatamente como sua irmã. Seu colete do Mercado Bargain, o vestido florido, até mesmo as presas estavam decoradas com adesivos de 50% de desconto. Em seu crachá lia-se: OLÁ! MEU NOME É EURYALE, MORRA SEMIDEUS!
— Você nos obrigou a persegui-lo por um bom tempo, Percy Jackson — disse Euryale. — Mas agora você está encurralado, e teremos a nossa vingança!
— Os Cheese ’n’ Wieners estão apenas $2,99 — adicionou Stheno, prestativa. — Departamento de mercearia, corredor três.
Euryale rosnou.
— Stheno, o Mercado Bargain era uma fachada! Você está sendo idiota! Agora, abaixe essa bandeja ridícula e me ajude a matar esse semideus. Ou você se esqueceu que ele é o responsável por matar Medusa?
Percy se afastou. Mais quinze centímetros e ele estaria rolando montanha abaixo.
— Olhe, senhora, nós já passamos por isso. Eu nem me lembro de matar Medusa. Eu não me lembro de nada! Não podemos simplesmente fazer uma trégua e falar sobre suas promoções semanais?
Stheno deu à sua irmã um olhar com beicinho, que era difícil de fazer com presas de bronze gigante.
— Podemos fazer isso?
— Não! — Os olhos vermelhos de Euryale perfuravam Percy. — Eu não ligo para o que você se lembra, filho do deus do mar. Eu posso sentir o cheiro do sangue da Medusa em você. É fraco, sim, faz vários anos, mas você foi o último a derrotá-la. Ela ainda não voltou do Tártaro. A culpa é sua!
Percy realmente não entendeu isso. O conceito “morrer e em seguida retornar do Tártaro” deu-lhe uma dor de cabeça. Claro que, assim como a ideia de que uma caneta esferográfica poderia se transformar em uma espada ou que os monstros podem disfarçar-se com algo chamado Névoa ou que Percy era o filho de um deus de cracas incrustadas de cinco mil anos atrás. Mas ele acreditava. Mesmo que sua memória tenha sido apagada, ele sabia que era um semideus da mesma maneira ele sabia que seu nome era Percy Jackson. Desde a sua primeira conversa com a loba Lupa, admitiu que este louco mundo confuso de deuses e monstros era sua realidade. O que quase o sugou.
— Que tal chamar isso de um empate? — ele disse. — Não posso matá-la. Você não pode me matar. Se vocês são irmãs da Medusa, que transformava as pessoas em pedra, eu não deveria estar petrificado agora?
— Heróis! — Euryale disse com desgosto. — Eles sempre trazem isso à tona, assim como a nossa mãe! “Porque você não pode transformar as pessoas em pedra? Sua irmã pode transformar as pessoas em pedra.” Bem, desculpe desapontá-lo, rapaz! Essa foi a maldição de Medusa somente. Ela era a mais terrível na família. Ela tem toda a sorte!
Stheno parecia ferida.
— Mamãe disse que eu era a mais hedionda.
— Silêncio! — Euryale estalou. — Quanto a você, Percy Jackson, é verdade que carrega a maldição de Aquiles. Isso faz de você um pouco mais difícil de matar. Mas não se preocupe. Nós vamos encontrar uma forma.
— A maldição de quê?
— Aquiles — Stheno disse alegremente. — Oh, ele era lindo! Mergulhado no rio Estige quando uma criança, você sabe, então ele era invulnerável, exceto por um pequeno ponto em seu tornozelo. Isso é o que aconteceu com você, querido. Alguém deve ter te jogado no Estige e fez a sua pele virar ferro. Mas não se preocupe. Heróis como você sempre tem um ponto fraco. Nós só temos que encontrá-lo, e então poderemos te matar. Não vai ser lindo? Pegue um Cheese ’n’ Wiener!
Percy tentou pensar. Ele não se lembrava de nenhum mergulho no Estige. Mas novamente, não se lembrava de muita coisa. Sua pele não dava a sensação de ser como ferro, no entanto isso poderia explicar como ele resistiu tanto tempo contra as górgonas.
Talvez, se ele simplesmente pulasse da montanha... iria sobreviver? Ele não queria se arriscar, não sem alguma coisa para retardar a queda ou um trenó ou...
Ele olhou para a grande travessa de prata de amostras grátis de Stheno.
— Hmm...
— Reconsiderando? — Stheno perguntou. — Muito inteligente, querido. Eu adicionei algum sangue de górgona nesses, assim sua morte será rápida e indolor.
Percy estava com a garganta apertada.
— Você adicionou o seu sangue no Wieners Cheese ’n’ Wieners?
— Só um pouco — Stheno sorriu. — Um pequeno corte sobre meu braço, mas você é um doce por se preocupar. O sangue do nosso lado direito pode curar qualquer coisa, você sabe, mas o sangue do nosso lado esquerdo é mortal...
— Sua idiota! — Euryale guinchou. — Você não deveria dizer-lhe isso! Ele não vai comer as salsichas se você lhe disser que estão envenenadas!
Stheno parecia atordoada.
— Ele não vai? Mas eu disse que seria rápido e indolor.
— Não se preocupe! — As unhas de Euryale cresceram em garras. — Nós vamos matá-lo da maneira mais difícil, é só cortá-lo até encontrar o ponto fraco. Uma vez que derrotemos Percy Jackson, vamos ser mais famosas que Medusa! Nossa patrona nos recompensará grandemente!
Percy agarrou sua espada. Ele teria que ter tempo para se mover perfeitamente – alguns segundos de confusão, pegar o prato com a mão esquerda...
Mantenha-as falando, pensou .
— Antes de me cortar em pedaços — disse ele — quem é essa patrona que você mencionou?
Euryale zombou.
— A deusa Gaia, é claro! Aquela que nos trouxe de volta do esquecimento! Você não vai viver tempo suficiente para conhecê-la, mas seus amigos irão enfrentar em breve sua ira. Mesmo agora, seus exércitos estão marchando para o sul. Na Festa da Fortuna, ela vai acordar, e semideuses serão ceifados como... como...
— Como os nossos preços baixos do Mercado Bargain! — Stheno sugeriu.
— Gah! — Euryale gritou para sua irmã.
Percy teve a abertura. Ele pegou a bandeja de Stheno, espalhando o venenoso Cheese ’n’ Wieners, e golpeou Contracorrente na cintura de Euryale, cortando-a ao meio.
Ergueu a bandeja e Stheno se viu diante de seu próprio reflexo gorduroso.
— Medusa! — ela gritou.
Sua irmã Euryale desmoronou em pó, mas já estava começando a se formar novamente, como um boneco de neve que não derrete.
— Stheno, sua idiota! — ela gorgolejava com seu rosto semiformado a partir do monte de pó. — Isso é apenas o seu próprio reflexo! Apanhe-o!
Percy bateu a bandeja de metal no topo da cabeça de Stheno, e ela desmaiou.
Ele apoiou a bandeja na bunda, fez uma oração silenciosa para que um deus romano supervisionasse sua estúpida arte de andar de trenó e pulou do lado da colina.

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