quinta-feira, 17 de outubro de 2013

I - Annabeth






ATÉ CONHECER A ESTÁTUA EXPLOSIVA, Annabeth pensou que estava preparada para qualquer coisa.
Ela havia andado pelo convés do navio voador, o Argo II, verificando e reverificando as balistas para ter certeza que estavam trancadas. Ela confirmou que a bandeira branca – nós viemos em paz – voava na frente do mastro. Reviu o plano com o resto da tripulação – e o plano B, e o plano B para o plano B. E o mais importante, retirou o seu acompanhante enlouquecido por guerra, treinador Gleeson Hedge, e o encorajou a tirar a manhã de folga em sua cabine e assistir reprises de um campeonato de artes marciais mistas (MMA). A última coisa que precisavam, ao pilotar um trirreme grego mágico para um acampamento romano potencialmente hostil era um sátiro de meia-idade usando roupas de ginástica agitando um porrete e gritando “Morra!”
Tudo parecia estar em ordem. Mesmo aquele misterioso arrepio que ela estava sentindo desde que o navio decolou parecendo ter se dissipado, pelo menos por enquanto.
O navio de guerra desceu das nuvens, mas Annabeth não conseguia parar um segundo de pensar consigo mesma. E se isso fosse uma má ideia? E se os romanos entrassem em pânico e atacassem o navio?
O Argo II definitivamente não parecia amigável. Sessenta metros de comprimento, com um casco banhado em bronze com séries de bestas na frente e atrás, um dragão flamejante de metal como figura de proa e duas balistas rotativas que poderiam disparar flechas explosivas poderosas o suficiente para destruir concreto... bem, não era o transporte mais apropriado para conhecer os vizinhos.
Annabeth tentou dar aos romanos um aviso de que eles estavam chegando. Pediu para Leo enviar uma de suas invenções especiais – um pergaminho holográfico – para alertar seus amigos dentro do acampamento. Esperançosamente a mensagem terá chegado até lá. Leo queria pintar uma mensagem gigante na base do casco – E AÍ! – e um rosto sorridente, mas Annabeth vetou a ideia. Ela não tinha certeza de que os romanos tinham senso de humor.
Agora era tarde demais para voltar.
As nuvens se abriam em torno do casco, revelando a relva verde e dourada de Oakland Hills abaixo deles. Annabeth agarrou um dos escudos bronze que ladeavam o corrimão de estibordo.
Seus três tripulantes tomaram suas posições.
No convés da popa, Leo corria apressado como um louco, verificando medidores e alavancas. A maioria dos timoneiros teria ficado satisfeito com um timão ou um leme. Leo também tinha instalado um teclado, monitor, controles de aviação de um Learjet, uma mesa de som de dubstep e um controle de sensores de movimento de um Nintendo Wii. Ele poderia virar o navio com um simples pigarro, disparar as armas escolhendo uma música ou levantar as velas agitando seus controles Wii bem rápido. Mesmo para um semideus, Leo tinha um sério TDAH.
Piper andava para frente e para trás entre o grande mastro e as balistas, praticando suas falas.
— Abaixem as armas — murmurou ela. — Nós só queremos conversar.
Seu charme era tão poderoso que suas palavras fluíram sobre Annabeth, preenchendo-a com o desejo de largar sua adaga e ter uma longa e agradável conversa.
Para uma filha de Afrodite, Piper se esforçava muito para minimizar sua beleza. Hoje ela estava vestida com uma calça jeans surrada, tênis desgastados e uma blusa regata branca com desenhos cor de rosa da Hello Kitty. (Talvez como piada, embora Annabeth nunca pudesse ter certeza se tratando de Piper.) Seu cabelo castanho repicado estava preso em uma trança do lado direito com uma pena de águia.
E então havia o namorado de Piper – Jason. Ele estava na proa em um arco sobre a plataforma elevada da besta, onde os romanos poderiam facilmente localizá-lo. Os nós de seus dedos estavam brancos no punhal da sua espada dourada. Ele parecia calmo para um cara que estava se fazendo de alvo. Sobre seus jeans e a camisa laranja do Acampamento Meio Sangue, ele vestia uma toga e um manto roxo – símbolos do seu antigo posto como pretor. Com o vento em seu cabelo loiro e seus olhos azuis gélidos, ele estava robustamente bonito e controlado – como um filho de Júpiter deveria estar. Ele cresceu no Acampamento Júpiter, e com sorte, o seu rosto familiar faria com que os romanos hesitassem em explodir o navio no céu.
Annabeth tentava esconder, mas ela ainda não confiava completamente nele. Ele agia perfeito demais – sempre seguindo as regras, sempre fazendo algo honroso. Ele tinha até a aparência perfeita. No fundo, tinha aquele incômodo pensamento: e se isso for um truque e ele nos traiu? E se navegarmos para o Acampamento Júpiter e ele disser – Hey, romanos! Deem uma olhada nesses prisioneiros e nesse navio legal que eu trouxe para vocês!
Annabeth duvidava que isso acontecesse. Ainda assim, não conseguia olhar para ele sem sentir um gosto amargo na boca. Ele foi parte do “programa de intercâmbio” forçado de Hera para apresentar os dois acampamentos. A Majestade Mais Irritante, Rainha do Olimpo, havia convencido os outros deuses que seus dois conjuntos de filhos – romanos e gregos – tinham que juntar forças para salvar o mundo da deusa maligna Gaia, que está despertando, e seus terríveis filhos, os gigantes.
Sem avisar, Hera raptou Percy Jackson, namorado de Annabeth, limpou sua memória e o enviou ao acampamento romano. Em troca, os gregos receberam Jason. Nada daquilo era culpa de Jason, mas toda vez que Annabeth o via, se lembrava o quanto ela sentia falta de Percy.
Percy... que estava em algum lugar abaixo deles naquele momento.
— Ah, deuses.
O pânico a invadiu. Ela o dispersou. Não podia se deixar dominar por completo.
— Eu sou uma filha de Atena — disse para si mesma. — Tenho que seguir meu plano e não me distrair.
Ela sentiu de novo aquele arrepio familiar, como se um boneco de neve psicótico estivesse atrás dela e respirasse em seu pescoço. Ela se virou, mas ninguém estava lá. Deveria ser o nervosismo. Mesmo num mundo de deuses e monstros, Annabeth não acreditava que um novo navio de guerra seria assombrado. O Argo II estava bem protegido.
Os escudos de bronze celestial no parapeito foram encantados para afastar os monstros e seu sátiro a bordo, Treinador Hedge, teria farejado qualquer intruso. Annabeth desejou que ela pudesse rezar por orientação para sua mãe, mas não era possível agora. Não depois do mês passado, quando ela teve um encontro horrível com sua mãe e ganhou o pior presente de sua vida…
O frio apertou. Ela pensou ter escutado uma voz fantasma no vento, rindo. Cada músculo em seu corpo ficou tenso. Alguma coisa estava prestes a dar terrivelmente errado. Ela quase mandou Leo reverter o curso. Então, no vale abaixo, trompas soaram. Os romanos os haviam avistado.
Annabeth pensou que sabia pelo que esperar. Jason havia descrito o Acampamento Júpiter bem detalhadamente. Ainda assim, ela teve dificuldade em acreditar no que via.
Cercado pelo Oakland Hills, o vale era no mínimo duas vezes maior que o Acampamento Meio-Sangue. Um pequeno rio serpentava em torno de um lado e enrolava-se em direção ao centro, como a letra maiúscula G, desaguando em um cintilante lago azul.
Bem embaixo do navio, aninhada na borda do lago, a cidade de Nova Roma reluzia à luz do sol. Ela reconheceu os pontos de referência que Jason havia lhe falado – o hipódromo, o Coliseu, os templos e parques, a vizinhança de Seven Hills com suas sinuosas ruas, vilas coloridas e jardins floridos.
Viu as evidências de uma recente batalha dos romanos contra um exército de monstros. A cúpula de um prédio, que ela adivinhou que seria o Senado, estava quebrada. A ampla Praça do Fórum estava esburacada com crateras. Algumas fontes e estátuas estavam em ruínas.
Dezenas de crianças de togas estavam saindo do Senado para ter uma vista melhor do Argo II. Mais romanos emergiram de lojas e cafés, boquiabertos e apontando enquanto o navio descia.
A cerca de oitocentos metros à oeste, onde as trompas tocavam, um forte romano apareceu na colina. Era exatamente como nos desenhos que Annabeth viu em livros militares de história com uma linha defensiva com espigões, grandes muralhas e torres de vigilância armadas com escorpiões e balistas. Dentro, fileiras perfeitas de alojamentos brancos alinhados com a estrada principal – a Via Principalis.
Uma coluna de semideuses emergiu dos portões, as armaduras e lanças brilhando enquanto corriam pela cidade. No meio da formação havia um elefante de guerra de verdade.
Annabeth queria pousar o Argo II antes que aquelas tropas chegassem, mas o chão ainda estava a trinta metros abaixo. Ela olhou para a multidão, na esperança de ver um vislumbre de Percy.
Então algo atrás dela fez BOOM!
A explosão quase a derrubou do navio. Ela girou e encontrou-se frente a frente com uma estátua furiosa.
— Inaceitável! — ele guinchou.
Aparentemente, ele surgiu da explosão, bem ali no dique. Uma fumaça amarela sulfurosa saía de seus ombros. As cinzas estavam em volta de seu cabelo encaracolado. Da cintura para baixo, ele era nada mais que um pedestal de mármore quadrado. Da cintura para cima, era uma figura humana musculosa em uma toga esculpida.
— Eu não permitirei armas dentro da Linha Pomeriana! — anunciou em uma voz nervosa de professor. — E certamente não aceitarei gregos!
Jason mandou a Annabeth um olhar que dizia Eu cuido disso.
— Términus — ele chamou. — Sou eu, Jason Grace.
— Ah, eu me lembro de você, Jason! — Términus resmungou. — Eu pensei que você tinha um juízo melhor para andar com os inimigos de Roma!
— Mas eles não são inimigos...
— Isso mesmo! — Piper interveio. — Nós só queremos conversar. Se pudéssemos...
— Há! — rebateu a estátua. — Não tente usar seu charme em mim, jovem garota. E guarde essa adaga antes que eu a pegue de suas mãos!
Piper encarou sua adaga de bronze, que ela aparentemente havia esquecido de que estava segurando.
— Hm... Certo. Mas como você a pegaria? Você não tem braços.
— Impertinência!
Houve um som agudo como POP e um lampejo amarelo. Piper gritou e deixou a adaga cair, que agora estava soltando fumaça e faíscas.
— Sorte sua que eu tenha acabado de sair de uma batalha — Términus anunciou. — Se eu estivesse com força total, já teria explodido essa monstruosidade voadora pelo céu!
— Espere aí — Leo deu um passo à frente, abanado seu controle de Wii. — Você chamou meu navio de uma monstruosidade? Eu sei que você não fez isso.
A ideia de que Leo poderia atacar a estátua com seu controle de jogo foi o suficiente para tirar Annabeth de seu choque.
— Vamos todos nos acalmar — ela levantou as mãos para mostrar que estava sem armas. — Acho que você é Términus, o deus das fronteiras. Jason me disse que você protege a cidade de Nova Roma, certo? Eu sou Annabeth Chase, filha de...
— Ah, eu sei quem você é! — A estátua olhou para ela com seus olhos brancos. — Uma filha de Atena, a forma grega de Minerva. Um escândalo! Vocês gregos, não tem nenhum senso de decência. Nós, romanos, sabemos o lugar ideal para aquela deusa.
Annabeth cerrou a mandíbula. Essa estátua não estava tornando fácil a tarefa de ser diplomática.
— O que você exatamente quer dizer com aquela deusa? E o que tem de tão escandaloso em...
— Certo! — interrompeu Jason. — De qualquer forma, Términus, nós estamos aqui em uma missão de paz. Nós adoraríamos ter permissão para aterrissar para que possamos...
— Impossível! — o deus resmungou. — Abaixem suas armas e rendam- se! Deixem minha cidade imediatamente!
— É pra fazer o que? — Leo perguntou. — Deixar a cidade ou nos render?
— Os dois! — Términus disse. — Rendam-se e depois saiam. Eu estou esbofeteando sua cara por fazer uma pergunta tão estúpida, seu garoto ridículo! Sente isso?
— Nossa — Leo estudou Términus com um interesse profissional. — Você está muito enrolado. Tem algumas engrenagens aí que precisam ser soltas? Eu poderia dar uma olhada.
Ele trocou o controle de Wii por uma chave de fenda do seu cinto mágico e bateu no pedestal da estátua.
— Pare com isso! — Términus insistiu. Outra pequena explosão fez Leo derrubar a chave de fenda. — Armas não são permitidas em solo romano dentro da Linha Pomeriana.
— Linha o quê? — Piper perguntou.
— Limite da cidade. — Jason traduziu.
— E todo este navio é uma arma! — Términus disse. — Vocês não podem aterrissar!
Embaixo, no vale, os reforços da legião estavam na metade do caminho até a cidade. A multidão em frente ao Fórum era mais de uma centena agora. Annabeth examinou os rostos e... Ah, deuses. Ela o viu. Ele estava andando em direção ao navio com os braços em volta de outras duas outras crianças como se fossem melhores amigos – um garoto robusto de cabelo preto com corte militar, e uma garota usando um elmo da cavalaria romana. Percy parecia tão à vontade, tão feliz. Ele usava uma capa roxa assim como Jason – a marca de um Pretor.
O coração de Annabeth fez um circuito de ginástica.
— Leo, pare o navio — ela ordenou.
— O quê?
— Você me ouviu. Mantenha-nos onde estamos.
Leo pegou seu controle e puxou-o para cima. Todos os noventa remos paralisaram. O navio parou de descer.
— Términus — Annabeth disse — Não há nenhuma regra contra parar sobre Nova Roma, há?
A estátua franziu a testa.
— Bem, não…
— Nós podemos manter o navio flutuando — Annabeth disse. — Vamos usar uma escada de corda para chegar ao Fórum. Desta forma, o navio não estará em solo romano. Não tecnicamente.
A estátua pareceu ponderar. Annabeth imaginou se ele estava coçando seu queixo com mãos imaginárias.
— Eu gosto de tecnicalidades — ele admitiu. — Ainda assim…
— Todas nossas armas ficarão a bordo no navio — Annabeth prometeu. — Eu presumo que os romanos – até mesmo aqueles reforços marchando em nossa direção – também terão que honrar suas regras dentro da Linha Pomeriana se você mandar, certo?
— Mas é claro! — Términus disse. — Eu pareço tolerar que quebrem as regras?
— Hã, Annabeth... — Leo disse. — Tem certeza de que isso é uma boa ideia?
Ela fechou os punhos para evitar que tremessem. Aquela sensação gelada ainda estava lá. Flutuava atrás dela, e agora que Términus não estava mais gritando e causando explosões, achou que podia ouvir a presença rindo, como se estivesse contente pelas decisões ruins que ela estava tomando.
Mas Percy estava lá em baixo… Ele estava tão perto. Ela tinha que alcançá- lo.
— Vai ficar tudo bem — ela disse. — Ninguém estará armado. Vamos conversar em paz. Términus se certificará que ambos os lados obedeçam às regras. — Ela olhou para a estátua de mármore. — Temos um acordo?
Términus fungou.
— Suponho que sim. Por enquanto. Você deve descer pela escada de corda até Nova Roma, filha de Atena. Por favor, tente não destruir minha cidade.


Nenhum comentário:

Postar um comentário