quinta-feira, 17 de outubro de 2013

XXVII - Piper






O GUIA HÉRCULES PARA O MARE NOSTRUM não ajudou muito com as cobras e mosquitos.
— Se essa é uma ilha mágica — Piper resmungou — porque não poderia ser uma ilha mágica legal?
Eles subiram desajeitadamente uma colina e desceram em um vale muito arborizado, cuidadosos para evitar cobras de listras pretas e vermelhas tomando banho de sol nas rochas. Mosquitos voavam aos enxames sobre poças de água parada nas áreas mais baixas. As árvores eram na maioria oliveiras atrofiadas, ciprestes e pinheiros. O zunido das cigarras e o calor sufocante lembravam Piper da reserva em Oklahoma durante o verão.
Até então, eles não haviam achado nenhum rio.
— Nós poderíamos voar — Jason sugeriu de novo.
— A gente pode deixar alguma coisa passar. Além disso, não tenho certeza se quero surpreender um deus não amigável. Como era seu nome? Água-moo?
— Aqueloo — Jason estava tentando ler o guia enquanto eles caminhavam, então toda hora ele batia em pedras e esbarrava nas árvores. — Aqui diz que ele é um potamus.
— Ele é um hipopótamo?
— Não. Potamus. Um deus do rio. De acordo com isso, ele é o espirito de um rio da Grécia.
— Já que não estamos na Grécia, vamos presumir que ele se mudou — Piper disse. — Não é um bom presságio para o quão útil esse livro será. Mais alguma coisa?
— Aqui diz que Hércules lutou com ele uma vez — Jason propôs.
— Hércules lutou com 99% de tudo na Grécia Antiga.
— Sim. Vamos ver. Colunas de Hércules... — Jason passou uma pagina — diz aqui que essa ilha não tem hotéis, restaurantes ou transporte. Atrações: Hércules e os dois pilares. Hmm, isso é interessante. Supostamente o sinal do dólar, sabe, o S com as duas linhas passando por ele? Isso veio do brasão espanhol, que mostra as Colunas de Hércules com uma bandeira tremulando entre elas.
Ótimo, Piper pensou. Jason finalmente está se dando bem com Annabeth e suas tendências nerds estão passado para ele.
— Alguma coisa útil? — ela perguntou.
— Espera. Aqui tem uma minúscula referência ao Aqueloo. Esse Deus do rio lutou com Hércules pela mão da bela Dejanira. Durante a luta, Hércules quebrou um dos chifres do deus do rio, que se tornou a primeira cornucópia.
— Corn do que?
— É aquela decoração de Ação de Graças — Jason disse. — O chifre com todas as guloseimas saindo dele? Nós temos alguns no refeitório do Acampamento Júpiter. Eu não sabia que o original era realmente o chifre de alguém.
— E supostamente nós temos que pegar esse outro chifre. Eu acho que não vai ser tão fácil. Quem foi Dejanira?
— Hércules se casou com ela. Eu acho... Não fala aqui. Mas acho que alguma coisa ruim aconteceu a ela.
Piper se lembrou do que Hércules os havia dito: sua primeira família morta, sua segunda esposa morta após ser iludida a envenená-lo. Ela estava gostando cada vez menos desse desafio.
Eles marcharam por uma crista entre dois morros, tentando permanecer na sombra; mas Piper já estava banhada em suor. Os mosquitos deixaram pequenas feridas em seus tornozelos, braços e pescoço, então ela provavelmente parecia uma vitima de catapora. Finalmente tinha conseguido um tempo sozinha com Jason e era assim que eles estavam gastando.
Ela estava irritada com Jason por ele ter mencionado Hera, mas sabia que não deveria culpá-lo. Talvez ela só estivesse irritada com ele em geral. Desde o Acampamento Júpiter, ela estava carregando um bocado de ressentimento e preocupação.
Ela se perguntava o que Hércules queria dizer sobre os filhos de Zeus. Eles não eram de confiança? Eles estavam sobre muita pressão? Piper tentou imaginar Jason virando um Deus quando ele morresse, de pé em uma praia guardando os portões para um oceano bem depois que Piper e todos os outros que ele conhecera em sua vida mortal estivessem mortos.
Ela se perguntava se Hércules já fora tão positivo quanto Jason – mais otimista, confiante, que se animava rapidamente. Era difícil de imaginar.
À medida em que eles desciam no próximo vale, Piper se perguntava o que estava acontecendo no Argo II. Ela estava tentada a enviar uma mensagem de Iris, mas Hércules os alertara para não contatar seus amigos. Ela tinha esperanças de que Annabeth poderia imaginar o que estava acontecendo e não enviar outro grupo para a costa. Piper não tinha certeza do que Hércules faria se fosse incomodado de novo. Ela imaginou o Treinador Hedge ficando sem paciência e mirando a balista no homem de roxo ou então eidolons possuindo a tripulação e os forçando a cometerem suicídio-por-Hércules.
Piper se arrepiou. Ela não sabia que horas eram, mas o sol já estava começando a descer. Como o dia havia passado tão depressa? Ela teria recebido bem o pôr-do-sol por suas temperaturas mais baixas, exceto pelo fato de que era também o tempo limite deles. Uma brisa fresca da noite não significaria muita coisa se eles estivessem mortos. Além do mais, amanhã já era primeiro de julho, o Calendas de julho. Se as informações deles estivessem corretas, seria o último dia de vida de Nico di Angelo e o dia em que Roma seria destruída.
— Pare — Jason disse.
Piper não tinha certeza do que estava errado. Então ela percebeu que podia ouvir água corrente a sua frente. Eles se arrastaram entre as árvores e se encontraram em uma margem de um rio. Tinha, talvez, uns treze metros de largura e apenas alguns centímetros de profundidade, um lençol de água prateado correndo sobre uma lisa cama de pedras. Alguns metros abaixo, as quedas d‘água mergulhavam em uma piscina natural azul escura.
Alguma coisa no rio a incomodava. As cigarras nas árvores estavam quietas. Nenhum pássaro estava cantando. Era como se a água estivesse dando uma palestra e permitia apenas sua voz.
Quanto mais a Piper escutava, mais convidativo o rio parecia. Ela queria beber da água. Talvez devesse tirar seus sapatos. Seus pés realmente precisavam de uma molhada. E aquela piscina natural... Seria tão legal pular ali com Jason e relaxar às sombras das árvores, boiar na água fresca. Tão romântico.
Piper se deu uma sacudida. Esses pensamentos não eram seus. Alguma coisa estava errada. Quase soava como se o rio estivesse usando um charme.
Jason se sentou em uma pedra e começou a tirar seus sapatos. Ele sorriu para a piscina natural como se não visse a hora de entrar nela.
— Pare com isso! — Piper disse para o rio.
Jason pareceu assustado.
— Parar com o que?
— Você não — Piper disse — ele.
Ela se sentiu boba apontando para a água, mas tinha certeza que havia algum tipo de mágica rolando, fazendo oscilar seus sentimentos.
No momento em que ela achou que havia enlouquecido e que Jason iria dizer isso pra ela, o rio falou: Me perdoe. Cantar é um dos poucos prazeres que me sobraram.
Uma figura emergiu da piscina natural como se estivesse em um elevador. Os ombros de Piper se tensionaram. Era a criatura que ela havia visto na lâmina de sua adaga, o touro com a face humana. Sua pele era azul como a água. Seus cascos levitavam na superfície do rio. No topo do seu pescoço bovino estava a cabeça de um homem com cabelo preto curto, uma barba em tranças no estilo grego, olhos pesarosos e profundos por trás de óculos bifocais e uma boca que parecia fazer um beicinho permanente. Saindo do lado esquerdo de sua cabeça estava um único chifre de touro – um curvo, preto e branco, como os que os guerreiros faziam de taças. A falta de equilíbrio fazia sua cabeça pender para a esquerda, então parecia que ele estava tentando tirar água do ouvido.
— Olá — ele cumprimentou. — Vieram me matar, suponho.
Jason colocou seus sapatos novamente e se levantou.
— Hmm, bem...
— Não! — Piper interveio. — Desculpa. Isso é constrangedor. Nós não tínhamos intenção de lhe incomodar, mas Hércules nos enviou.
— Hércules! — O homem-touro suspirou. Seus cascos passaram sobre a água como se estivesse pronto para investir. — Para mim ele será sempre Héracles. Esse é seu nome grego, você sabe: a glória de Hera.
— Nome engraçado — Jason comentou — uma vez que ele a odeia.
— De fato — o homem-touro concordou. — Talvez seja por isso que ele não protestou quando os romanos o renomearam Hércules. Claro, esse é o nome pela qual a maioria das pessoas o conhece... Sua marca, se preferir. Hércules não é nada se não bem consciente da sua imagem.
O homem-touro falou com rancor, mas como se fosse familiar, como se Hércules fosse um velho amigo que havia se perdido.
— Você é Aqueloo? — Piper perguntou.
O homem-touro dobrou as pernas da frente e abaixou a cabeça em um comprimento, o que Piper achou tanto gentil quanto um pouco triste.
— A seu serviço. Extraordinário deus do rio. Uma vez o espirito do mais poderoso rio da Grécia. Agora sentenciado a permanecer aqui, do lado oposto da ilha do meu velho inimigo. Ah, os deuses são cruéis! Mas se nos colocaram tão próximo um do outro pra punir a mim ou a Hércules, eu nunca tive certeza.
Piper não tinha certeza do que ele queria dizer, mas o barulho do rio, ao fundo, estava invadindo sua mente de novo – a lembrando de quão quente e com sede ela estava, quão agradável seria nadar. Ela tentou se concentrar.
— Eu sou Piper. Este é Jason. Nós não queremos lutar. É só que Herácles... Hércules... seja lá quem for, ficou com raiva da gente e nos enviou aqui.
Ela explicou sobre sua missão às terras antigas para parar os gigantes de acordar Gaia. Ela descreveu como seu grupo de gregos e romanos havia se juntado, e como Hércules havia tido um ataque de raiva quando descobriu que Hera estava por trás disso.
Aqueloo continuava tombando a cabeça para esquerda, logo Piper não tinha certeza se ele estava cochilando ou lidando com a fadiga de um chifre. Quando terminou, Aqueloo a fitou como se ela estivesse desenvolvendo uma lamentável brotoeja.
— Ah, querida... A lenda é verdade, sabe. Os espíritos, os canibais da água.
Piper teve que lutar contra o choro. Ela não havia contado para Aqueloo nada disso.
— C-como...?
— Os deuses do rio sabem de várias coisas — ele disse. — Além disso, você está se concentrando na visão errada. Se vocês tivessem chegado em Roma, a história da inundação teria lhe servido melhor.
— Piper? — Jason perguntou. — Do que ele está falando?
Seus pensamentos de repente estavam todos confusos como um caleidoscópio. A história da inundação... Se vocês tivessem chegado a Roma.
— E-eu não tenho certeza — ela disse, mas a menção da história da inundação fez soar um sino distante. — Aqueloo, eu não entendo...
— Não, você não entende — o deus do rio simpatizou. — Pobrezinha. Outra garota empacada com um filho de Zeus.
— Espera um minuto — Jason disse. — É Júpiter, na verdade. E como isso faz dela uma pobrezinha?
Aqueloo o ignorou.
— Minha garota, você sabe o motivo da minha luta com Hércules?
— Foi por causa de uma mulher — Piper se lembrou. — Dejanira.
— Sim — Aqueloo soltou um suspiro. — E você sabe o que aconteceu com ela?
— Hmm... — Piper olhou para Jason.
Ele pegou seu guia e começou a passar as páginas.
— Aqui não diz bem...
Aqueloo bufou indignado.
— O que é isso?
Jason piscou.
— Apenas... O guia Hércules para o Mare Nostrum. Ele nos deu esse guia para...
— Isso não é um livro — Aqueloo insistiu. — Ele deu isso a vocês para me irritar, não foi? Ele sabe que eu odeio essas coisas.
— Você odeia... Livros? — Piper perguntou.
— Bah! — A face de Aqueloo enrubesceu, tornando sua pele azul em um roxo berinjela. — Isso não é um livro.
Ele deu uma patada na água. Um pergaminho surgiu do rio como um foguete em miniatura e aterrissou em frente ele. Ele o abriu com seus cascos. O amarelo e envelhecido pergaminho estava desenrolado, coberto com escritas em latim que estavam sumindo e gravuras feitas à mão bem elaboradas.
— Isso é um livro! — Aqueloo disse. — Ah, o cheiro de pele de ovelha! O sentimento elegante do pergaminho desenrolando sob meus cascos. Você simplesmente não pode duplicar esse sentimento em algo como isso ai.
Ele meneou indignado para o guia na mão de Jason.
— Vocês jovens de hoje e seus aparatos ultramodernos. Páginas encadernadas. Pequenos quadrados de textos que não são amigos dos cascos. Isso ai é um livro encadernado, um e-book, se preferir. Mas não um livro tradicional. Ele nunca irá substituir o bom e velho pergaminho!
— Hmm, eu só vou guardar ele agora — Jason enfiou o guia em seu bolso traseiro da mesma forma que colocaria uma arma perigosa no coldre.
Aqueloo pareceu ter se acalmado um pouco, o que foi um alívio para Piper. Ela não precisava ser atropelada por um touro de um chifre com uma obsessão por pergaminhos.
— Agora — Aqueloo disse, batendo de leve em uma gravura em seu pergaminho. — Essa é Dejanira.
Piper se ajoelhou para ver. A pintura a mão era pequena, mas podia dizer que ela havia sido bem bonita, com cabelos negros e longos, olhos escuros e um sorriso brincalhão que provavelmente deixava os homens malucos.
— Princesa de Calydon — o deus do rio disse, pesaroso. — Ela estava prometida a mim, até que Hércules se meteu no meio. Ele insistiu no combate.
— E ele quebrou seu chifre? — Jason adivinhou.
— Sim. Eu não poderia perdoá-lo nunca por isso. É horrivelmente desconfortável, ter apenas um chifre. Mas a situação foi pior para a pobre Dejanira. Ela poderia ter tido uma longa e feliz vida casada comigo.
— Um touro com cabeça de homem — Piper disse — que mora em um rio.
— Exatamente — Aqueloo concordou. — Parecia impossível que ela recusasse né? Ao invés disso, ela foi com Hércules. Ela escolheu o belo e carnal herói ao invés do bom e fiel marido que a teria tratado bem. O que aconteceu depois? Bem, ela deveria ter sabido. Hércules era muito envolvido em seus próprios problemas para ser um bom marido. Ele já havia assassinado uma esposa, sabe. Hera o amaldiçoou, então ele ficou enraivecido e matou sua família inteira. Coisa horrível. Foi por isso que ele teve de fazer aqueles doze trabalhos como punição.
Piper se sentiu horrorizada.
— Espere... Hera o deixou maluco e Hércules que teve de ser punido?
Aqueloo encolheu os ombros.
— Os olimpianos nunca parecem pagar por seus crimes. E Hera sempre odiou os filhos de Zeus... ou Júpiter — ele olhou desconfiado para Jason — de qualquer jeito, minha pobre Dejanira teve um fim trágico. Ela ficou com ciúmes dos vários casos de Hércules. Ele corria atrás de mulheres pelo mundo todo, veja bem, assim como seu pai Zeus, flertava com toda mulher que conhecia. Finalmente Dejanira ficou tão desesperada que deu ouvidos a um mau conselho. Um astuto centauro chamado Nessus disse a ela que se ela quisesse que Hércules fosse fiel para sempre, teria que espalhar um pouco de sangue de centauro dentro da camisa favorita de Hércules. Infelizmente, Nessus estava mentindo porque queria vingança sobre Hércules. Dejanira seguiu suas instruções, mas ao invés de tornar Hércules um marido fiel...
— Sangue de centauro é como ácido — Jason disse.
— Sim — Aqueloo confirmou — Hércules teve uma morte horrível. Quando Dejanira percebeu o que havia feito, ela... — o Deus do rio passou o dedo pelo pescoço.
— Isso é horrível — Piper disse.
— E a moral, querida? — Aqueloo disse. — Tome cuidado com os filhos de Zeus.
Piper não conseguia olhar para seu namorado. Ela não tinha certeza de que poderia mascarar a preocupação em seus olhos. Jason nunca seria como Hércules. Mas a história envolvia todos os seus medos. Hera havia manipulado seu relacionamento, assim como manipulou Hércules. Piper queria acreditar que Jason nunca entraria em um frenesi assassino como Hércules. Mas, novamente, apenas quatro dias atrás, ele havia sido controlado por um eidolon e quase matou Percy Jackson.
— Hércules é um deus agora — Aqueloo continuou. — Ele se casou com Hebe, a deusa da Juventude, mas ainda sim, raramente está em casa. Ele vive nessa ilha, protegendo aqueles pilares bobos. Diz que Zeus o obriga a fazer isso, mas acho que ele prefere aqui ao Monte Olimpo, alimentando seu rancor e lamentando sua vida imortal. Minha presença o lembra de seus fracassos – especialmente a mulher que finalmente o matou. E a presença dele me lembra a pobre Dejanira, que poderia ter sido minha esposa.
O homem-touro deu uma pancadinha no pergaminho, que se enrolou e afundou na água.
— Hércules quer meu outro chifre para me humilhar — Aqueloo disse. — Talvez isso o faria se sentir melhor sobre si mesmo, sabendo que eu estaria triste também. Além disso, o chifre se tornaria uma cornucópia. Boa comida e bebida iriam fluir dele, assim como meu poder faz com que o rio flua. Não há dúvidas de que Hércules iria manter a cornucópia para si. Isso seria uma tragédia e um desperdício.
Piper suspeitou que o barulho do rio e o som sonolento da voz de Aqueloo ainda estivesse afetando seus pensamentos, mas não conseguia deixar de concordar com o deus do rio. Ela estava começando a odiar Hércules. Esse pobre homem-touro parecia tão triste e solitário.
Jason se agitou.
— Desculpa, Aqueloo. Sinceramente, você arranjou um negócio ruim. Mas talvez... Bem, sem o outro chifre, você não seria tão torto. Poderia fazer você se sentir melhor.
— Jason! — Piper protestou.
Jason levantou as mãos.
— Só uma ideia. Além do mais, eu não vejo muitas opções. Se Hércules não conseguir esse chifre, ele vai matar a gente e nossos amigos.
— Ele tem razão — Aqueloo disse — vocês não tem escolha. E é por isso que eu espero que me perdoem.
Piper franziu a testa. O deus do rio soou como se estivesse com o coração partido, ela queria acariciar a sua cabeça.
— O perdoar pelo quê?
— Eu também não tenho escolha. Eu preciso parar vocês.
O rio explodiu e uma parede de água colidiu com Piper.

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