quinta-feira, 17 de outubro de 2013

XXXIII - Annabeth






ANNABETH PENSOU QUE PODIA SER PIOR. Se ela tinha que ir a uma missão solo, pelo menos tinha conseguido almoçar com Percy às margens do Tibre primeiro. Agora tinha que pegar uma carona de scooter com Gregory Peck.
Só sabia sobre o filme antigo por causa de seu pai. Ao longo dos últimos anos, desde que eles tinham feito as pazes, começaram a passar mais tempo juntos e ela tinha aprendido que seu pai tinha um lado sentimental. Claro, ele gostava de história militar, armas e biplanos, mas também gostava de filmes antigos, especialmente comédias românticas dos anos 40 e 50. Roman Holiday era um de seus favoritos. Ele fez Annabeth assistir. Ela achava o enredo bobo – uma princesa escapa dos seus mentores e se apaixona por um jornalista americano em Roma, mas suspeitava que seu pai gostava desse filme porque o fazia se lembrar de seu próprio romance com a deusa Atena: outro casal impossível que não poderia terminar com um final feliz. Seu pai não se parecia em nada como Gregory Peck. Atena certamente não era nada como Audrey Hepburn. Mas Annabeth sabia que as pessoas viam o que queriam ver. Elas não precisavam da Névoa para distorcer suas percepções.
Enquanto a scooter azul bebê ziguezagueava pelas ruas de Roma, a deusa Reia Silvia comentava com Annabeth sobre como a cidade havia mudado ao longo dos séculos.
— A Ponte Sublícia ficava bem ali — ela disse, apontando para uma curva no rio Tibre. — Você sabe, onde Horatius e seus dois amigos defenderam a cidade de um exército invasor? Esse foi um romano valente!
— E olhe querida — Tiberino adicionou — aquele é o lugar onde Rômulo e Remo se encontraram em terra firme.
Ele parecia estar falando sobre um local à beira do rio, onde alguns patos estavam fazendo um ninho de sacos plásticos rasgados e embalagens de doces.
— Ah, sim — Reia Silvia suspirou alegremente. — Você foi tão gentil em inundar a si mesmo e levar meus bebês em terra firme para que os lobos o achassem.
— Não foi nada.
Annabeth se sentiu leviana. O deus rio estava falando sobre algo que tinha acontecido há milhares de anos, quando esta área não era nada além de pântanos e talvez alguns casebres. Tiberino salvou dois bebês, um dos quais viria a fundar o maior império do mundo.
Não foi nada.
Reia Silvia apontou para um edifício amplo e moderno.
— Isso costumava ser um templo de Vênus. Depois foi uma igreja. Depois um palácio. Depois um edifício. Pegou fogo três vezes. Agora é um edifício novamente. E aquele lugar ali...
— Por favor — Annabeth disse. — Vocês estão me deixando tonta.
Reia Silvia riu.
— Sinto muito, querida. Há camadas sobre camadas de história aqui, mas não é nada em comparação a Grécia. Atenas já era antiga quando Roma era ainda uma coleção de casebres de barro. Você irá ver se sobreviver.
— Você não está ajudando.
— Chegamos — Tiberino anunciou.
Ele parou em frente a um edifício de mármore, a fachada coberta de fuligem da cidade, mas ainda assim bela. Entalhes de deuses romanos decoravam o teto. A entrada compacta era barrada por portões de ferro, fortemente trancados com um cadeado.
— Eu vou entrar lá dentro? — Annabeth desejou que tivesse trazido Leo, ou pelo menos tivesse pegado emprestado algum alicate de seu cinto de ferramentas.
Reia Silvia cobriu a boca e riu.
— Não, minha querida. Não lá dentro. Lá embaixo.
Tiberino apontou para uma série de degraus de pedra, na lateral da construção do tipo que levaria até um apartamento de porão se esse lugar fosse Manhattan.
— Roma é caótica na superfície — disse Tiberino — mas isso não é nada comparado ao que tem abaixo do solo. Você deverá descer até a cidade soterrada, Annabeth Chase. Encontre o altar do deus estrangeiro. As falhas de seus antecessores irão guiá-la. Depois disso... eu não sei.
A mochila de Annabeth se tornou pesada em suas costas. Durante dias ela esteve estudando o mapa de bronze e vasculhando o laptop de Dédalo atrás de informações. Infelizmente, as coisas que ela tinha aprendido tinham feito essa missão parecer ainda mais impossível.
— Meus irmãos... Nenhum deles fez todo o caminho até o santuário, fizeram?
Tiberino balançou a cabeça.
— Mas você sabe qual é o prêmio que a espera, se puder libertá-lo.
— Sim.
— O prêmio pode trazer a paz aos filhos da Grécia e de Roma — Reia Silvia disse. — Isso pode mudar o curso da guerra que está vindo.
— Se eu sobreviver — Annabeth lembrou.
Tiberino assentiu tristemente.
— Você também sabe qual guardião deverá enfrentar?
Annabeth se lembrou das aranhas em Fort Sumter e o do sonho que Percy descreveu, a voz sibilante no escuro.
— Sim.
Reia Silvia olhou para o marido.
— Ela é corajosa. Talvez seja mais forte do que os outros.
— Espero que sim — disse o deus do rio. — Adeus, Annabeth Chase. E boa sorte.
Reia Silvia sorriu.
— Temos uma tarde encantadora planejada! Vamos fazer compras!
Gregory Peck e Audrey Hepburn partiram em disparada em sua moto azul bebê. Então Annabeth se virou e desceu as escadas sozinha.


Ela tinha estado no subterrâneo muitas vezes. Mas no meio da descida, percebeu quanto tempo fazia desde que não se aventurava sozinha. Ela congelou.
Deuses... Ela não tinha feito algo assim desde que era criança. Depois de fugir de casa, passou algumas semanas sobrevivendo por conta própria, vivendo em becos e se escondendo de monstros até que Thalia e Luke a colocaram debaixo de suas asas. Depois, ela chegou ao Acampamento Meio-Sangue, onde viveu até os doze anos. Depois disso, todas as suas missões tinham sido com Percy ou seus outros amigos.
A última vez que tinha se sentido assustada e sozinha, devia ter sete anos de idade. Ela se lembrou do dia que Thalia, Luke e ela entraram num covil de ciclopes no Brooklyn. Thalia e Luke tinham sido capturados e Annabeth tinha que libertá-los. Ela ainda se lembrava de ficar tremendo num canto escuro daquela mansão em ruínas, ouvindo os ciclopes imitando as vozes de seus amigos, tentando enganá-la para que ela se mostrasse.
E se isso também fosse uma armadilha?, ela se perguntou. E se os outros filhos de Atena tivessem morrido porque Tiberino e Reia Silvia os levaram para uma armadilha? Será que Gregory Peck e Audrey Hepburn eram capazes de fazer algo assim?
Ela se obrigou a continuar. Não tinha escolha. Se a Atena Partenos estava realmente lá embaixo, poderia decidir o destino da guerra. E mais importante, ela poderia ajudar sua mãe. Atena precisava dela.
Ao final das escadas, encontrou uma velha porta de madeira com um anel de puxar feito de ferro. Acima do anel havia uma placa de metal com um buraco de fechadura. Annabeth começou a considerar formas de arrombar a fechadura, mas logo que ela tocou o anel de puxar uma forma ardente queimou no meio da porta: a silhueta da coruja de Atena.
Fumaça saiu do buraco da fechadura. A porta se abriu para dentro.
Annabeth olhou para cima pela última vez. No topo da escada, o céu era um quadrado azul brilhante. Mortais desfrutavam da tarde quente. Casais estavam de mãos dadas em cafés. Turistas movimentavam as lojas e museus. Os próprios romanos estariam cuidando de seus afazeres rotineiros, provavelmente, não considerando os milhares de anos de história sob seus pés e definitivamente inconscientes dos espíritos, deuses e monstros que ainda habitavam a cidade ou o fato de que sua cidade podia ser destruída ainda hoje, ao menos que um certo grupo de semideuses conseguisse parar os gigantes.
Annabeth passou pela porta.
Ela se viu em um porão que era um ciborgue arquitetônico. Paredes de tijolos antigos eram cruzadas por modernos cabos elétricos e encanamentos. O teto era sustentado por uma combinação de andaimes de aço e antigas colunas romanas de granito. A metade da frente do porão estava cheio de caixas. Só por curiosidade, Annabeth abriu algumas. Algumas estavam repletas de carretéis de corda multicolorida para pipas, artes e projetos de artesanato. Outras estavam cheias de espadas de gladiador feitas de plástico barato. Talvez em algum momento este porão tenha sido um galpão de uma loja turística.
Na parte de trás do porão, o chão tinha sido escavado, revelando outro conjunto de degraus de pedra branca que conduziam a uma parte ainda mais profunda do subsolo. Annabeth foi até a borda. Mesmo com o brilho lançado por sua adaga, estava escuro demais para enxergar o que tinha abaixo. Ela apoiou a mão na parede e encontrou um interruptor de luz.
Ela o apertou. Lâmpadas fluorescentes brancas de um brilho intenso iluminaram as escadas. Abaixo, ela viu um piso de mosaico decorado com cervos e faunos – talvez um aposento de uma antiga vila romana, simplesmente escondido sob esse porão moderno junto com caixas de cordas e espadas de plástico.
Ela desceu. O lugar tinha cerca de seis metros quadrados. As paredes um dia tinham tido uma pintura brilhante, mas agora a maioria dos afrescos estava descascada ou desbotada. A única saída era um buraco cavado em um canto do chão onde o mosaico tinha sido puxado para cima. Annabeth se agachou perto da abertura. O buraco levava para baixo em direção a uma ampla caverna, mas ela não conseguia ver o fundo.
Ela ouviu barulho de água corrente a talvez dez ou doze metros abaixo. O ar não cheirava a esgoto – apenas a coisas velhas, mofo e era ligeiramente doce, como flores em decomposição. Talvez fosse uma via antiga de água vindo dos aquedutos. Não havia nenhum caminho para baixo.
— Eu não vou pular aí — ela murmurou para si mesma.
Como se em resposta, algo brilhou na escuridão. A Marca de Atena brilhou no fundo da caverna, revelando tijolos brilhantes ao longo de um canal subterrâneo doze metros abaixo. A coruja de fogo parecia estar lhe provocando: Bem, este é o caminho, garota. Então é melhor você descobrir alguma coisa que te ajude a descer.
Annabeth considerou suas opções. Pular era perigoso demais. Não havia escadas nem cordas. Ela pensou em pegar emprestado algum dos andaimes de metal da parte de cima para usar como um daqueles postes que os bombeiros usam para descer, mas eles estavam parafusados no lugar. Além disso, não queria desmoronar o edifício em cima dela.
Frustração se arrastou por ela como um exército de cupins. Tinha passado toda sua vida vendo outros semideuses ganharem poderes incríveis. Percy podia controlar água. Se ele estivesse aqui, poderia elevar o nível da água e simplesmente boiar até lá embaixo. Hazel, segundo o que ela tinha dito, podia encontrar caminhos no subterrâneo com uma precisão impecável e até mesmo criar ou mudar o curso dos túneis. Ela poderia facilmente fazer um novo caminho. Leo iria apenas sacar as ferramentas certas de seu cinto e construir algo para fazer o trabalho. Frank poderia se transformar em um pássaro. Jason poderia simplesmente controlar o vento e flutuar até embaixo. Até mesmo Piper com seu charme... Poderia ter convencido Tiberino e Reia a serem um pouco mais úteis.
O que Annabeth tinha? Uma adaga de bronze que não fazia nada de especial e uma moeda de prata amaldiçoada. Ela tinha sua mochila com o laptop de Dédalo, uma garrafa de água, alguns pedaços de ambrósia para situações de emergência e uma caixa de fósforos, provavelmente inútil, mas seu pai tinha colocado em sua cabeça que ela devia ter sempre uma maneira de acender fogo.
Ela não tinha poderes incríveis. Até mesmo seu único item mágico, o boné de invisibilidade dos Yankees, tinha parado de funcionar e ainda estava em sua cabine no Argo II.
Você tem a sua inteligência, uma voz disse. Annabeth se perguntou se Atena estava falando com ela, mas devia ser apenas sua imaginação.
Inteligência... Como o herói favorito de Atena, Ulisses. Ele venceu a Guerra de Tróia usando inteligência, não força. Venceu todos os tipos de monstros e dificuldades com sua rápida perspicácia. Isso é o que Atena valoriza.
A filha da sabedoria caminha solitária.
Isso não significava apenas sem outras pessoas, Annabeth percebeu. Significava sem qualquer poder especial.
Okay... Então como chegar lá em segurança e ter a certeza de que ela teria um jeito de sair novamente se necessário?
Ela subiu de volta para o porão e olhou para as caixas abertas. Corda de pipa e espadas de plástico. A ideia que teve era tão ridícula, que quase a fez rir, mas era melhor que nada.
Ela começou a trabalhar. Suas mãos pareciam saber exatamente o que fazer. Às vezes isso acontecia quando estava ajudando Leo com o maquinário do navio ou quando estava desenhando plantas arquitetônicas no computador. Ela nunca tinha feito nada com corda de pipa e espadas de plástico, mas parecia fácil, natural. Em questão de minutos, ela tinha usado uma dúzia de carreteis de corda e uma caixa de espadas para fazer uma escada de corda improvisada – uma linha trançada, resistente, ainda que não muito espessa, com espadas amarradas a cada meio metro para servir como apoio de mãos e pés.
Para testar, ela amarrou uma ponta em torno de uma coluna de sustentação e se apoiou sobre a corda com todo o seu peso. As espadas de plástico se dobraram debaixo dela, mas elas forneciam algum volume extra para os nós da corda, assim pelo menos poderia manter uma melhor aderência.
A escada não iria ganhar nenhum prêmio pelo design, mas poderia levá-la para o fundo da caverna com segurança. Primeiro, ela enfiou dentro de sua mochila os carretéis restantes de corda. Ela não sabia o porquê, mas eram um recurso a mais e não muito pesados. Ela voltou para o buraco no chão de mosaico. Fixou uma extremidade da escada numa parte do andaime mais próximo, estendeu a corda para dentro da caverna e desceu.

Nenhum comentário:

Postar um comentário